Jacinta - I
Está calor aqui, não está? A Jacinta pensou que o melhor seria abrir a janela do quarto. Permitir que o vento perturbasse os papéis que tinham pernoitado em cima da mesa. E que inquietasse os cortinados insensíveis ao que acontecia do lado de lá. Um vento desembaraçado. Inteligente. Um vento que fosse vento. Robusto. Com cheiro a intempéries experimentadas. A naufrágios chorados. Um vento que vestisse as nuvens, o mar e o céu de negrume. De pesadas obscuridades. De chuva, de muita água e ondas descomunais. Um vento horrendo e preto. Carrancudo. Uma ventania que soprasse ao contrário, sem se preocupar com as pressões. Um vendaval.
Jacinta sente-se sufocada. Hesita entre abrir a janela e correr para longe. Mas o calor torna-se intolerável. E ela não consente elevadas temperatura num corpo que é seu. De uma corrente de ar quente que vem de fora. Que lhe invade o quarto. Fica exasperada. Áspera. Azeda. Amaldiçoa frentes quentes de massas de ar em movimento que lhe roubam vontade.
O corpo da Jacinta incendeia-se e pinta-se de vermelho. Sem fulgor. Sem luz. Está muito calor ali. E o ciclone não de dá. Nem se mostra. Um cheiro nauseabundo alastra-se pelo quarto. Adivinha terras pútridas prenhes de vermes. Lamaçais de águas insurrectas, águas furiosamente arrancadas às profundezas. Chuvas que carregam pedaços de chão, de cascalho, de barro. Jacinta vê águas sujas e lamacentas. Sabe que brotaram ferozmente das cavadas e colossais galerias de abelhas que cobriram a Terra.
Está muito calor ali. Jacinta asfixia. Afoga-se nas margens lamacentas do rio. As plantas carnívoras abundam. Mas ali não está um deserto e ela não é um insecto. Afoga-se na Drosera, aprisionada pela seiva peganhenta. E ela luta. Ensaia a fuga. Não consegue porque o esforço é inglório. Combate, porém cada mais suja fica. A planta começa a digeri-la. Suga-lhe a carne e a sua alma não resiste também. Com uma força estranha, tira-lhe a vida. Quem sabe se definitiva.
Está muito calor ali. As raízes desventram a terra. Existem animais mortos, a terra está podre, a água poluída. Jacinta está encurralada. A Drosera diz-se hábil predadora.
Está tanto calor ali. Jacinta enreda-se no caos. Desespera. Confunde-se. O calor é excesso. Jacinta abre a janela. Os cabelos voluteiam ao sabor do alento. Uma brisa leve e suave ao final da tarde. E ela prevê que todas as coisas poderão surgir outra vez. Que a ordem se instalará de novo.
E lá ao fundo, à esquerda da janela do seu quarto, Jacinta edificou um hangar para abrigar as palavras. As que lhe provocam calor. As que lhe gelam as mãos. E as que pariram o caos.