ensombrar
A sociedade actual tem receio de si própria. Está prenhe de medos. Mas prepara-nos para os superar. Também nos defende e protege. No entanto treme. Porque o medo não é racional. Que seja por isso. Ou pelas armadilhas que ela própria instala. Com a vida que também é batoteira. Certas que o pânico é bem pior. O medo sobra-me…
O medo enregela a razão. Diz-lhe que não e o caricato sobrevém. Como se o susto não fosse temor. Há medos que se compreendem. Outros nem por isso. Não se entendem. E os que metem muito medo. A morte é um processo mais que natural e universal. Gera medos de várias cores. Não por partir, antes por não ficar. Não por abalar só, apenas porque se deixam pessoas que se estimam. Umas choram. Pensam que também irão e têm medo. Outras não. Recear uma formiga é risível. Porém real. O bicho trabalha que se farta e nunca pára quieto. Carreiro, carreirinho onde vais tão de mansinho? Temem que a comida falte e que não sejam notícia na televisão. Um tremor de terra assusta. Acordei com um barulho tremendo vindo do lado oposto ao meu quarto. A sala era a divisão da casa onde a minha mãe tinha um guarda-loiça. Com copos e chávenas. Também uma terrina e o resto. Duas dúzias de pratos. Ou mais. E canecas que a minha avó trazia, sempre que nos visitava. Assim como se fossem vidros gigantes a baterem uns nos outros. Depois, vieram os gritos, portas a abrirem-se. E num instante a rua celebrava um nível de assistência pouco usual. Um prime time da sismologia. Só percebemos depois. Primeiro assustámo-nos. A seguir veio o medo. Simultaneamente o pânico. Desta vez a coisa foi rápida. As consequências nem por isso.
O medo é assim, não se explica. Nem se diz com palavras escolhidas. Uma para cada um. Não chegam. O catálogo dos medos tem páginas infinitas. Mas há palavras que metem medo. Paz. Chama a guerra. Destroços. Por causa da maré negra. Dos acidentes rodoviários. Apartamentos. Há as barracas. E os vãos de escada. Amor. Carrega a separação. O divórcio de afectos. A perda de amados. A palavra vida que descaradamente apregoa a morte. Inverno porque apaga o Verão. Mar pois come os rios. Às vezes os barcos. E não tem cabelos para eu me agarrar. E trepar. Sombra é uma palavra ruim. Vultos e restos. São formas sem jeito. Descompostas. Negras. Não se desnudam. E à noite, ganham rostos hediondos.
Por isso, gosto das formas que a luz me permite ver. Nem que seja em contra-luz. Com muitos reflexos. E desvios esplêndidos. O belo é palavra má. O feio existe. O imperfeito. Mesmo que irracional. Mas ecos da juventude e da velhice fotografam-se na minha memória. As fotografias não se questionam. Fixam instantes verdadeiros.
E hoje tive medo. Por causa de uma coisa que eu vi. Um vulto esbranquiçado que sobreveio ali. E Pã ensina os outros deuses a tocar. Eles é que não prestam atenção...