Jacinta VII
Da estrada, a casa mal se vê. Um caminho de terra empoeirada ladeado de árvores muito verdes. As copas fazem-se de cabelos caídos em lágrimas. Virados para o solo. De cabeça menosprezada. Elas sempre cresceram para baixo, numa inglória tentativa de entender as raízes, constata Jacinta com a certeza que conhece pessoas admiráveis que escondem a sua verticalidade. Não são capazes, ou não querem, assumir capacidades. Numa contínua rejeição de protagonismo. Árvores fartas e elegantes. Apesar da sua fragilidade. Bastam-se na sua magnitude e beleza. Olham-se ao espelho do rio que está ali e coram. Mas benzem-no também. Por isso olham para o chão. E brota a cumplicidade de quem há muito se ama. A Primavera ressuscita a cada beijo. A cada afago dos ramos que olham para sobrado poeirento. Na solidez de árvores de ornamentação. E quantas vezes lhes apetece partir no bico de uma garça, ao pôr-do-sol.
Os chorões alternam com dois castanheiros e irritam-se com a sua dimensão. Presunçosos! Não precisavam de crescer tanto. Ainda por cima, ornam-se de ouriços picantes. Que riem muito. Tanto que a cada gargalhada uma castanha cai no chão. E com uma nogueira de copa largamente ramificada. Que contribui generosamente para embelezar a estrada. Com flores amarelas. E lança um intenso e distintivo perfume. E bebe água no rio. Olham para o céu e agradecem. Apenas os chorões se viram para baixo. Modéstia tamanha para quem foi jardim na Babilónia. E sempre que o vento chega com a sua música, as árvores ficam de pé. E bailam com ele. Os mais novos já não se recordam. E os velhos não o podem confirmar. Jacinta mora sozinha. Dois gatos que se empoleiram no parapeito da janela fazem-lhe companhia. Ou ressonam aos seus pés. E ela fica só. Na sala, porque lhes nega o quarto. Dois persas dourados e nariz achatado. Rabo curto de pêlo imperial.
A casa completa-se na cadência do lugar. Pela sinceridade. Pelas raízes que se agarram àquele bem-aventurado chão. Uma terra que se regenera ciclicamente. Como as gerações que desapareceram da casa. Resistem os vultos emoldurados. Casamentos e baptizados. E o Natal. Dias com vento e com chuva. À beira do rio. Na margem do Sol.
Jacinta acorda cansada de audácias assumidas à luz do dia. Perdera o controlo do jogo. Cobre-se com um roupão de seda. Vermelho. Que ele lhe trouxera do Irão. Júlio conhece grande parte do mundo. A profissão leva-o para longe. De vez em quando. Todos os dias telefona. Uma vez, duas. Às vezes três. Diz-lhe por onde anda. As saudades. O amor. Tanto que se amam. Das prendas que lhe compra. Uma por dia. Porque a quer todos os dias. Jacinta viaja com ele. À distância, sente os aromas e as cores das terras que ele pisa. E as vozes. Como é que se diz amo-te em persa? Pergunta-lhe. Tora dost daram! Tora dost daram! E ela ri da sua ignorância linguística. E cora. E deseja tê-lo ali. Só para lhe responder. Em português. Tanto!
Aproxima-se da janela do quarto. O gato dorme no parapeito de mármore. Assusta-se e abala. Vai terminar o sono debaixo do chorão. E Jacinta olha para um passado que quis. A janela permite-lhe voar. E num instante sai dali. Percorre os corpos cercados pelo calor da paixão. A janela autoriza os sonhos a entrar e a sair. Mas só os reais. E pela janela entram os sons da vontade. À janela, os pés de Jacinta passeiam pela estrada poeirenta. E junto ao chorão atapeta dez anos de lânguido e doce veneno. Do interior para o exterior. Ambos olham para o chão.
A chamada não atendida extingue-se em cima da cama. Jacinta tinha-se vestido para olhar de longe.
fotografia de Jorge Soares