tourear
Não entra mais uma alma. A praça está atulhada de gente sôfrega. As bancadas da praça pintam-se da cor do Verão. Da exaltação e da impaciência. Na arena, há pedaços de pânico. Verónicas de medo. Capotazos de arrojo. Nas bancadas, os olhos estão incrédulos. No redondel, capotes a rigor misturam-se com lágrimas do suor que escorre assustado. A multidão acena palmas e olés. O cartel garante-lhes um espectáculo assombroso. Inolvidável. Único. As palavras chegam às tábuas vestidas de espantos. Imperceptíveis. Cá de baixo, os rostos não têm feições. O bruaá antecede as cortesias. O cornetim anuncia a hora. O pavor assalta e mistura-se com a vaidade. As mãos tremem intimidadas com a pega de caras. E advertem que não sabem nada daquilo. Que a valentia não está ali. Mas o apoio escorrega das bancadas. Desistir seria a vergonha. As pessoas pagaram bilhete. E a diversão tinha que continuar. A inquietação voa de olhar em olhar. A cumplicidade também. E medo não é fraqueza, porém o risco é verdade. Ali, na areia ocre não há treino nem perícias. Apenas descaradas afoitezas. Imprudências juvenis. E ao som do cornetim começam a entrar os artistas. Que fazem do sobressalto graça. E a mole humana ecoa júbilos colectivos.
- Touro! Ó touro lindo! Chama com passos amedrontados.
- Touro! Insiste com o capote tremulando advertências.
A assistência enlouquecida pede mais. Mais arrojo. E as pernas flutuam a cada movimento do bicho. Pela cor negra da pelagem. Pelos cornos em pontas que estavam embolados. Ninguém via. A multidão não cala a êxtase. O boi investe. Ninguém via. E o toureiro cai no chão.
- OOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOh!!!
A humilhação pública acontece na arena da praça de touros. A saída em ombros jaz na terra castanha e arrependida da arena. O toureiro permanece estendido. Entram os forcados. E os cavaleiros. E mais toureiros. O público levanta-se. As palavras calam-se em silêncios suspensos. O homem é levado em ombros. A multidão ovaciona. Esgotam-se os aplausos. Gritam-se olés e hurras muito arrebatados. Emocionados. Dá a volta. Não consegue perceber que é figura do espectáculo que sucumbiu à primeira faena. No rosto rasga esgares de dor. De derrota. O sucesso de uma cornada memorável. E recolhe à enfermaria.
E volta convencido que é figura de primeiro plano. Recebeu duas orelhas na mesma tarde. Por isso, é carregado nos ombros e transportado para fora da arena até o portão principal. Ali, mereceu o galardão máximo para um toureiro. Sem saber que a ambulância imprime arte à lide de tourear o percurso para o hospital. E pergunta como pode explicar a gratuidade da aventura. E se o touro o matou. Não! No Minho, bem à tardinha, Apolo recolhe a manada. Atravessa uma nuvem aqui e outra acolá. E as pachorrentas vaquinhas dormem na corte. Sem culpa que a neblina negra do medo lhes adultere a condição. É o cheiro que avisa que elas estão ali. “Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz.” Platão lá sabia porquê. É preciso ver!
[Fotografia de GMV]