calar
Salvador Dalí A persistência da Memória
atropelos sem memória
Shiu! Da minha boca jorram descansos hesitantes. Usurpados e clandestinos. Dos meus lábios não escorrem palavras azedas e desconfiadas. Shiu! Oiço uivos de gente assustada. Melopeias atrapalhadas na toada dos caminhos. Andamentos vertiginosos. Shiu! E lá ao fundo, um pássaro executa primorosamente o adágio da manhã. Engulo a tentação de respirar. E do pátio regressam vozes aflautadas. Euforias guinchadas. Abraços perplexos. Bocas escancaradas vertem pedaços de mar e de sol. De ócios enérgicos. E olhos suspensos colam-se às janelas. Shiu! Escuto portas aferrolhadas que se desfecham. Chaves que tilintam cuidados de última hora. Sorvo ânsias de falar. Segredo salvações, no intervalo, empoleiradas ao portão. Shiu! As vozes passeiam felinas no corredor. Atropelos cinzentos, mesclados de cores do Verão. Desenham-se escoltas no parapeito da janela. Shiuuuuuuu! Estou oculta. Ninguém sabe que estou acantonada, ali! Não quero ser tela surrealista. Representação irracional, longe do mundo real. Shiu! Vejo e escuto. Obsessões humanas donde escorre a passagem do tempo e da memória. Da memória que se esgota. Do tempo que tem olhos. Não sei se vê. Shiu! Estou refém de mim. Aqui! Com recordações. Sem elas, não há expectativas. Porém, o tempo desvirtua-se. E cala-se, também. Flacidamente. Como os relógios. Shiu! Estou sentada. Shiu!
Fotografia da Internet