nascer
Nasceu ele e tu mais eu. E mais os outros. E nascemos todos os dias. Para renascer no dia seguinte. E depois no outro que não há tempo para perder. E se o houver é intrujice. Porque alguém ousou atrasar o relógio que geme na parede rebocada da sala. Sangrando ao sabor de negras horas. Celebrando porque há instantes ditosos. Desumano, todo aquele que se afoita a apressar os ponteiros. As horas correm aceleradas. Para a frente e para trás. Excessivas. E a saudade surge limpando os rostos, sempre que o passado e o futuro se amotinam no presente.
- E quem se atreveu a controlar um tempo que sou eu?
- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!
- Fala! Só quero um nome. Depressa não há tempo para desbaratar!
- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!
- Como ousas desafiar-me? Diz-me quem te moveu!
- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!
- Teimoso! Não vês que os ponteiros nem precisos são?
- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!
- Burro! Confundes tudo. O relógio não é o tempo. Tu não nasceste assim. Evoluis, mas não mudas. Eu sou. Eles crêem que me controlam através de ti. Que nascer é o mesmo que viver.
- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!
- Eu sou o tempo, não percebeste? Eu vivo em cima das árvores que me escondem e protegem. Há gente ruim que persegue o meu final. Tu és um adorno, eu sou o princípio e o fim.
- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!
- Desgraçado! Cego e manipulado! Eu perduro para além de ti. Tu vendes-te por aí. Eu vivo ao sabor do Sol e das marés. Tu és um tic-tac constante que eu silencio. Tu emperras na ausência de mim. Marcas lembranças e utopias. Invenções. Desejos que se agasalham no vão das horas. Compromissos impostos com hora de entrada e de saída. Com hora de almoço medida e contada.
- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!
- Imbecil enfeite! Tu mostras o que eu quero que digas. Tu és a minha boca. O meu corpo. Eu sou eu. Tu és acessório figurante. Eu sou essencial. Nasci primeiro. Eu sou assim!
- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!
E o tempo, farto de tanta teimosia repetida, abalou. E pensou em D. Quixote. E naquela mulher que, um dia destes, encontrou no autocarro. Que se queixava de não ter tempo para nada. Que jurava que o relógio andava sempre adiantado. Que as 24 horas estavam falsificadas. Que trabalhava que se fartava. E era duro o trabalho que fazia. Mas, rematava ela que “quem nasce lagartixa não chega a jacaré". Pois não. Às vezes chega. Se tiver tempo. E é exactamente por essa razão que um relógio nunca chegará a tempo.
Já na rua, sorri. E gargalhei. Ao mesmo tempo que as minhas mãos retorciam a corda do relógio. Com entusiasmo. Com impiedade. E fui-me embora convencida que havia roubado o tempo…