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ponto de admiração

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21
Set08

Jacinta VIII

Paola

de Jorge Soares (Parque das Nações, Lisboa)

 

A única janela aberta é a de Jacinta. Ela olha para o céu e contempla a promessa de um dia admirável. Um dia que surge azul-celeste. Foi o Sol que o forçou a sair da noite. E a ela também. Foram raios excitados que a expulsaram. E coriscos. Os que obstaram que o sono se fizesse sem intervalos. Serenamente. A noite passara. Apenas passara. Assim, da mesma forma que o tempo. Apesar do relógio. Apesar de si. Um tempo que ela tem como amante. E a quem reivindica tolerância. Para esquecer. Só por fora. Ambos sabem que as memórias não se apagam. Somente vivem no silêncio da voz. Na suavidade da sua pele. E nos dois pequenos gansos que poisam sobre o televisor que dorme com ela no quarto. Em faiança. Pintados à mão em tons de rosa. Porque os viu carinhosos e harmoniosos. Ele comprou-lhos. Para lhe dar prazer, mimava-a. Tanto! E cheiravam a flores sorridentes. Hoje, um adorno inodoro em cima de televisão de alcova. Apenas estão.

 

A chamada, que ela não atendeu, permanece em cima da cama. Moribunda. Com morte anunciada. Ela decidira assim, na certeza de um entendimento honesto e íntegro. E é nessa convicção que olha para o monte. Ali, onde os devaneios se sucedem. E vê o Sol nascer todas as manhãs. E chora sofrimentos de doer. Que a enlouquecem. Jacinta vestiu-se para olhar de longe um amor que foi seu porque quis. Mas já não é pela opção que fez. Acabara o tempo de uma bela história de paixões imprudentes. E sobrou tempo para cruzar mares com vagas de arrependimento e ondas de incerteza. Desertos despidos de afectos e beijos amantes. Sobejaram noites com cansaços e dores extensíssimas. E é ela que apazigua o coração. Que lhe diz que a dor vai passar. E mente. E pede-lhe ânimo para permanecer no corpo que tem. Roga-lhe que não se inquiete. Que controle os sentidos. Todavia, que não lhe apague da memória o Amor. Tanto que ela o deseja e quer…

 

Jacinta olha para dentro e sente que perdera a noção do tempo. Combinara sair cedo. No chão, junto à janela, morre um roupão vermelho que um dia viera de longe. Toma um duche apressado. Veste-se e sai. Perfeitamente bonita. Estrondosamente elegante.  Convictamente sedutora. Os gatos empoleiram-se no parapeito da janela. Vêem-na partir. Olham-se e assustam-se com a partida arrebatada. E o Sol adormece enroscado nos felinos que falseiam um sono desapaixonado. Refastelados. Com o rabo assombrado. Como só os gatos dormem. Até que ela volte. E a janela enrodilha-se com os bichanos ao Sol.

 

O telemóvel ficou em cima da cama. De propósito. Por quem não quer chorar outra vez.Tocou uma vez, duas… Calou-se. E os gatos persistem no sono soalheiro. Das escadas ecoam silhuetas de passos apressados. De salto alto. Salto agulha, como ela explica. Na calçada, Jacinta apressa o tempo. Um empedrado pisado e polido por encontros e desencontros. Numa digressão de promessas desajustadas. E o tempo corre, corre… sem alterar a paisagem. Jacinta iniciou a corrida que a conduzirá pelo caminho que escolheu. Com sentido único, apesar da possibilidade de voltar atrás. E recomeçar tudo outra vez... Jacinta olha em frente.  À procura do mar... para desabafar. Para que , sempre que lá voltar, as gaivotas saibam do que ela está a falar. De dez admiráveis anos. Vezes 365 dias. E noites!

 

 

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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