Jacinta - IX
de Paola (Ericeira)
A calçada espreguiça-se até lá ao fundo. Onde se acantoa na rotunda das oliveiras. E as árvores caminharam de longe para ali. Generosas. Tolerantes. Espacialmente descompostas. Aquele não é o seu lugar e é por isso que se alvoroçam. E não riem, nem dão fruto. E os carros buzinam descontentamentos aos seus ouvidos. Travam receios. Aceleram pressas que lhes são impostas. E as raízes embrenham-se na terra na ininterrupta procura de água. E os automobilistas transtornados colhem folhas ávidos de misericórdia divina. Sem perceber que as estão a mutilar. E que aquilo não é redondo. Mas serve para andar à roda.
Na calçada, os passos andam de lá para cá. E ao contrário. É o tráfego normal para aquele fim de manhã. Numa terra em que as estatísticas denunciam envelhecimentos enrugados. Sentados nos bancos do jardim. Do outro lado da estrada. À espera que os venham substituir. O Ti António espreita clientes que fugiram para o gigantesco supermercado inaugurado no fim-de-semana. E lamenta que na sua mercearia só caibam três pessoas de cada vez. Porque o rol também ocupa espaço e não parou de crescer. Jacinta cumprimenta-o com um sorriso brando. De quem não tem tempo para desperdiçar e não quer encetar diálogos à porta da venda. O Ti António devolve-lhe um aceno escancarado, ao mesmo tempo que os seus olhos se mimoseiam com a passagem da mulher. Cada vez mais bonita, consideram ainda deslumbrados.
Agora, com mais serenidade, ela percorre o cinzento e empoeirado lajeado. Espezinhado por rotinas quotidianas. Que não deixam rasto. São pés ritmados no compasso dos afazeres. Tum-tum-tic-tic-tic… Que não entendem que aquela não é a calçada da glória. Que os seus apelidos permanecerão, como até ali, na sombra do analfabetismo. Há muito que cessaram os cantos na ladeira. E se estabeleceu a indolência afadigada que vomita ritmos estupidamente constantes. Jacinta vive um daqueles dias em que as palavras maltratam as suas reflexões. E as pedras da calçada são arma de arremesso. Sublevam-se, escarafuncham e abalam. As pedras são palavras que lhe sovam o corpo.
Jacinta pára junto ao número sete. Um primeiro andar, no fim da rua. Olha para a janela que está escancarada. Estendidos no parapeito, os tapetes denunciam arrumos e limpezas antecipadas. Não era sexta-feira. Nem sábado. Somente um dia da semana. O seu dedo indicador pressiona o botão da campainha. Trim-trim-triiim… som e voz de quem exige a porta aberta.
- Jacinta, querida! Entra… Podias ter telefonado …