Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

ponto de admiração

ponto de admiração

28
Set08

Jacinta - IX

Paola

  de Paola (Ericeira)

A calçada espreguiça-se até lá ao fundo. Onde se acantoa na rotunda das oliveiras. E as árvores caminharam de longe para ali. Generosas. Tolerantes. Espacialmente descompostas. Aquele não é o seu lugar e é por isso que se alvoroçam. E não riem, nem dão fruto. E os carros buzinam descontentamentos aos seus ouvidos. Travam receios. Aceleram pressas que lhes são impostas. E as raízes embrenham-se na terra na ininterrupta procura de água. E os automobilistas transtornados colhem folhas ávidos de misericórdia divina. Sem perceber que as estão a mutilar. E que aquilo não é redondo. Mas serve para andar à roda.

 

Na calçada, os passos andam de lá para cá. E ao contrário. É o tráfego normal para aquele fim de manhã. Numa terra em que as estatísticas denunciam envelhecimentos enrugados. Sentados nos bancos do jardim. Do outro lado da estrada. À espera que os venham substituir. O Ti António espreita clientes que fugiram para o gigantesco supermercado inaugurado no fim-de-semana. E lamenta que na sua mercearia só caibam três pessoas de cada vez. Porque o rol também ocupa espaço e não parou de crescer. Jacinta cumprimenta-o com um sorriso brando. De quem não tem tempo para desperdiçar e não quer encetar diálogos à porta da venda. O Ti António devolve-lhe um aceno escancarado, ao mesmo tempo que os seus olhos se mimoseiam com a passagem da mulher. Cada vez mais bonita, consideram ainda deslumbrados.

 

Agora, com mais serenidade, ela percorre o cinzento e empoeirado lajeado. Espezinhado por rotinas quotidianas. Que não deixam rasto. São pés ritmados no compasso dos afazeres. Tum-tum-tic-tic-tic… Que não entendem que aquela não é a calçada da glória. Que os seus apelidos permanecerão, como até ali, na sombra do analfabetismo. Há muito que cessaram os cantos na ladeira. E se estabeleceu a indolência afadigada que vomita ritmos estupidamente constantes. Jacinta vive um daqueles dias em que as palavras maltratam as suas reflexões. E as pedras da calçada são arma de arremesso. Sublevam-se, escarafuncham e abalam. As pedras são palavras que lhe sovam o corpo.

 

Jacinta pára junto ao número sete. Um primeiro andar, no fim da rua. Olha para a janela que está escancarada. Estendidos no parapeito, os tapetes denunciam arrumos e limpezas antecipadas. Não era sexta-feira. Nem sábado. Somente um dia da semana. O seu dedo indicador pressiona o botão da campainha. Trim-trim-triiim… som e voz de quem exige a porta aberta.

 

- Jacinta, querida! Entra… Podias ter telefonado …

 

2 comentários

Comentar post

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

Arquivo

  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2021
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2020
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2019
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2018
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2017
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2016
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2015
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2014
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2013
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2012
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2011
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2010
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2009
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2008
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub