contar
de
Nivaldo Menezes
Transversalidade dos afectos ou promiscuidade familiar
Nos Contos Populares multiplicam-se as personagens de encantos e desencantos. Todas com engenho e arte. Com ensinamentos também, ou não fosse a sabedoria popular um recurso admirável do conhecimento. Na memória colectiva da gente, estende-se um património afectivo admirável. E a generosidade é tão grande, que os fazem correr de mão em mão. Intrigas simples, mas nem por isso menos corrosivas e acutilantes. Cada história sabia a viagens maravilhosas ao mundo da fantasia, de mão dada com os avós. E que bem que elas faziam! Alongavam abraços. Partilhavam afectos. Excitavam as gargalhadas a rir, sempre que se cumpria o arrojo de lhes acrescentar um ponto. Era a imaginação a espreguiçar-se e a criatividade a encostar-se no devaneio.
A terra dos contos é órfã de autoria. No entanto, não consta que alguém tivesse apresentado queixa por ter sido plagiado. E como são tantos, os contos, cada um de nós tem o seu. Eu tenho vários. Uns são maravilhosos de encantar. Outros muito mais divertidos. Gosto daqueles que têm animais. E até dos religiosos e morais. E a delícia dos que tanto se esforçam para justificar o lugar! E há sempre os que dão ares de superioridade, com um exemplo na ponta da língua.
Trouxeram bruxas e fadas. Príncipes e sapos. Princesas e madrastas. Gatos com botas e cães descalços. Gatas domésticas e meninas friorentas. Capuchos coloridos e padres comilões. Heróis cavaleiros, vítimas inocentes, vilões e fanfarrões. Cobardias e mentiras. Logros e lealdades. Narizes empolados e rostos torcidos. Contributos notáveis de cada personagem para a que a história se perpetue. Pequenina, que a memória já não é grande coisa.
A madrasta da pobre Gata Borralheira é uma das personagens mais odiadas dos contos de encantar. A sua crueldade vornou-a famosa. E eu dou por mim a pensar que as madrastas não são tão malvadas assim , as mães é que são extraordinárias. Contudo, não me lembro de contos com padrastos ruins. Nem bonzinhos. Os contos são invenção masculina, sem dúvida.
À saída da escola, o conto não é ficção. E o rapaz muito indignado exclama:
- Mãe, o João disse-me que tinha um padrasto!
- É porque tem, João.
- Mãe, eu também tenho um, não tenho?
- Sim… o pai que a mãe te arranjou…
- Ó mãe, esse não é o meu pai! É só padrasto.
- E o teu pai, sabes dele?
Mais não ouvi. Fiquei sem saber se era dos bons ou dos outros. Se o padastro é pai ou se o pai é que é padrasto. Nem se as personagens dos contos populares vão ter outro enquadramento.
Vou com pressa. Ao sábado é dia de comer arroz-doce. Ora se D. Sebastião faz parte do imaginário português, por que razão o arroz-doce não pode fazer do meu? Arrogo-me o direito de compensar a míngua semanal de afectos açucarados. Reconheço-o pelo cheiro.