acordar
de Jorge Soares
Gosto de dormir até acordar. Sem intervalo. Adormecer as horas cansadas. E sonhar que não me vou levantar. É só um sonho. Não é crime, é? Às vezes, já na cama, adormeço com a noite. E ela conta-me histórias de embalar. São cumplicidades que embrulham sonos e sonhos. Ela fala-me de penumbras e escuridões. Eu garanto-lhe que há luz. Ela garante que o Sol é amarelo, mas nunca o viu. Leva as mãos à cabeça e chora.
O dia acordou depois de a noite ter adormecido. Bem cedo! Espreguiçou-se, bocejou e disse qualquer coisa que não compreendi. Palavras arrufadas de quem lava os pés na água que corre fria. Exclamações amarelas de quem acorda com o gorjear dos pardais. E com o alvoroço do galo na capoeira. E com os grilos que cantam o alvorecer: gri‑gri...eu não morri... eu não morri... Estava frio e o Sol despertou também. Tomou um duche rápido. Vestiu-se. Tomou o pequeno-almoço. Pôs-se à janela determinado na espera. A Lua haveria de chegar. E talvez, seranemente, sussurar sem a olhar:
- Desculpa! Vai-te deitar. Já é tarde.
E o Sol deitar-se-á com um enorme sorriso nos lábios. Sem lhe tocar. Adivinha-lhe o rosto. Define-lhe o gesto. Chorosa, a Lua, confessa que assim não é feliz.
E eu, que não interfiro em guerras conjugais, espreguiço-me e grito ao vento que Gosto tanto de acordar todas as manhãs!