arrear
O todo abafa as partes. E estas, por mais que se esforcem, nunca serão um todo. Há brechas. Deslizamentos territoriais. Invasões regionais e, até, submissões a modismos nacionais. A zombaria e os risinhos amarelados pela ignorância. Pela normalização déspota e segregadora de alforrias individuais. À diversidade autónoma, e autóctone, sobrepõe-se a regra. E a tolerância é uma utopia nos manuais escolares. Académicos e com linguajar regulamentado. De vez em quando uma incursão. Um desvio. Mas controlado e muito bem explicado. Enquadrado por desígnios correntes e muito bem cuidados.
Falo de palavras e de sintaxe. De idiomatismos que adornam o falar. Que definem fronteiras afectivas. E cuja riqueza lexical ultrapassa normativos e acordos. Apenas e só, porque genuínos. Melódicos e perifrásticos. Por isso, fantásticos. E muito respeitáveis.
Falo de sonoridades de verdade. Enternecedoras. Faço-o porque me lembrei da minha prima Laurinda. Uma rapariga acantonada entre o Sado e o Atlântico. Mais tarde fugiu para a cidade. Perdi-lhe o rasto.
Ó Laurindinha, vem à janela
Ver a tua prima, que ela vai p'ra longe
Se ela vai p'ra lá, deixá-la ir
Ela é moça nova, mas não torna a vir
Ele não torna a vir, se ela não quiser
Ainda vem a tempo, de te ver mulher.
A minha prima tinha a singularidade de cantar palavras. De enrolá-las na areia. E tinham sabor a maresia. E o volume das marés. As palavras da minha prima iluminavam-se com uma consoante rolada. De carácter vibrante e muito soante. Arreia, isto é arreia! Ó rapariga, arreia é pôr no chão e eu não tenho nada na mão. Tanto que ela rria! A ignorante era eu. Na verdade, ela pronunciava areia como eu. Mas mais molhada.
E hoje, sempre que me ouço, sinto-me apátrida. Porque as minhas palavras não rolam os rês. E eu gostava de ter uma pátria linguística. Como a minha prima Laurrinda.