engadanhar
da Internet
Há muito tempo, gadanhava-se a valer. A vida trabalhava-se na agricultura. Na dos outros que tinham terras imensas. Quintas e quintais. Herdades e montes. Lavras de arroz e searas de trigo. A vida era pintada de amarelo-esverdeado. Escuro, quase preto. E quando a fotossíntese se cumpria era uma alegria clandestina. Iniciava-se a cadeia alimentar. E a fome grassava por ali. Sem esse admirável fenómeno seriam incapazes de sobreviver. Por carência de verde. Já Aristóteles dizia que as plantas necessitavam do Sol para se esverdearam à vontade. Só que o Sol não sabia que a gadanha era uma criatura nefasta. Dois cabos menores seguiam sempre a par. Por isso, a lâmina feroz. Cortante e muito torturante. Exigia arte e engenho, manuseio de quem entendia do assunto. Tudo era feito com muito cuidado. Às vezes, apenas para desorientar os incautos, mudavam-lhe o nome. Tratavam-na por tu, o que dizia da intimidade. Ou não. E a gadanha tanto respondia por gadanho como por alfange. Mas acudia. E cortava. O trigo, as canas, o junco, a erva. A daninha e a outra. Não entendia as diferenças. Apenas o verde. Então, gadanhava tudo o que serpenteasse verdura. Alguns lavradores munidos da alfaia agrícola, e por tanto a usar, até se persuadiram que morreriam a gadanhar. Sempre a gadanhar, acabaram por entender que aquilo era só um adorno em mãos erradas. Sujas e enjoadas. Inquinadas por bebedeiras de comando. Convencidas que a cultura não era popular. E mascarados de cavaleiros apocalípticos, trouxeram a peste, guerra, fome e morte. Esqueceram-se que não podiam causar danos à erva. Nem às árvores. E o verde sobreviveu nas bocas moribundas dos corpos. A terra floreou.
Nos tempos actuais, as ceifeiras mecânicas substituíram a tradição. A gadanha esgadanhou-se na prateleira do museu. Na adega, talvez no barracão. É sobras de dias gastos a chorar as canas esquartejadas à beira do rio. A gadanha é termo afectivo. Património das minhas memórias visuais. De longe, apenas de muito longe. Acabou-se a possibilidade de gadanhar. Porque se foi, a gadanha.
Hoje sinto-me esgadanhada pela indolência de uns. Ignorância de outros. Inoperância de muitos. Inépcia de quase todos para labutar com a gadanha. Acintosas vontades. E por mim que estou desassossegada com tanta falta de jeito.
E é por ver tanta gente a gadanhar que não percebo a razão de estar assim. Muito engadanhada. Faço riscos na areia, ao acaso. E lá ao fundo, vejo linhas inúteis. E percebo que gadanhar é profissão sem futuro. Certamente, por falta de jeito. É que as mãos também se enganam.