Vociferou pelas escadas todas. Para baixo, em ziguezagues. Para cima, aos trambolhões. Bateu nas portas e voltou a bramir. E desconjuntou-se num eco enfurecido. Assim como um trovão exasperado com o céu. O berro, que a porta do terceiro esquerdo vibrou, irrompeu com muita determinação e mais raiva. E tanta impossibilidade! O Rui subira os degraus numa correria desenfreada. Nos ténis carregava a urgência de quem tinha um relógio para cumprir. E o calendário amarelado, com os cantos das folhas dobrados, trespassado pelo prego. Contava os dias, incluindo sábados e domingos, e decorava a parede branca da cozinha. Também os jantares azedos e salgados pelos excessos do pai. Um homem de raras palavras e de muitas frases simples e imperativas. Com sujeito composto. Felizmente, para o Rui, o pai ainda não tinha chegado. Fora almoçar com uns amigos as sobras do último domingo de caça. Ouvira a mãe dizer à avó. Que a conversa não lhe era permitida. Ele comeu a sopa de feijão que fumegava na tigela. A sua. Gulosamente, porque tinha muita pressa. E a colher retorcia-se aflita com tanta velocidade. Partira como largam os campeões de cem metros. Sem obstáculos. Ou não. Como um Ferrari na pole position num prémio de fórmula 1. O Rui sabia-lhe o roncar do motor. Acelerava e viajava pelo mundo inteiro montado no Cavalinho Rampante. Era a cor que o fazia voar. O brilho-vermelho. O Rui pegava numa trincha e avivava-lhe a cor, de vermelho-luz. De vitórias repetidas. E ia da pista até à Lua. A sua cabecita inundava-se de carinhos vermelhos. Que achava na rua e a mãe cosia no boné de sarja vermelha.
- Mãe, mãe, eu vou a casa do Vítor.
- Não vais, não senhor! Daqui a nada, chega o teu pai. E que lhe digo eu? É domingo, filho.
Pois era. O Rui sabia-o mesmo sem olhar para o calendário comido pelo Sol alapado na parede. Cravado num prego. Aquele era o domingo que lhe faltava. O Ferrari tinha hipóteses. E o Rui tinha a certeza que o cavalinho amarelo-empinado empurraria o carro para a vitória. Tinha que ver. E exibir a bandeira aos quadradinhos que lhe dava o triunfo. Mesmo antes da corrida acabar.
- Mãe, mãe, eu tenho que ir a casa do Vítor.
A mãe não sabia que a televisão do Vítor deixava o Rui festejar e estremecer. A sua não. A mãe negara-lhe a intenção. O Vítor, e os pais, visitavam a avó Carolina. O Rui gelou um sorriu petrificado. O sangue deixara de circular. Saiu da pista. Rodou duas vezes. Encontrou-se violentamente com o muro. Capotou e incendiou-se de imediato. E pela porta do terceiro esquerdo, um urro dorido atirou-se pelos degraus. O Vítor não o podia ter abandonado. Afinal era o seu melhor amigo. Nunca lhe indultaria a malvadez.
Adormeceu vencido pelas lágrimas. E lá ao fundo, no parque, as crianças brincavam. Fingiam corridas de vencer e perder. Um barquinho muito vermelhinho galopava pela água enlameada e, sentado no banco do jardim, o jornal noticiava que a Ferrari perdera a corrida. O Rui dormia derrotado também.
No lago, o barco era um carro que vivia sozinho num cavalo de brincar. Atrás dele está um carro que é o carro em que o cavalo veio. E o Rui sonha com um carro vermelho… Sem imaginar que aquilo são brincadeiras de gente crescida, a fingir.
No patamar, os brincos-de-princesa baloiçavam assustados. Há muito que não batiam a porta assim. Com tanta velocidade.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]