O que eu queria mesmo é dar cambalhotas! Percebem? Cambalhotas! Num tapete sem fim. Daqui até ao vento. E que, quando lá chegasse, ele me ensinasse a voar e a cambalhotar. Para eu continuar a rodopiar. Tal e qual como se o mundo fosse uma enorme bola de goma-elástica. Colorida e muito divertida. Que me fizesse acreditar o que o meu corpo me obriga esquecer. Que posso saltar com uma perna, correr, nadar, esticar-me ao comprido. Deitar-me no chão. Num tapete vermelho que fingia comigo. E os dois, de mão dada, deslizávamos por aí. Porque a cambalhota é uma volta que se dá de cabeça para baixo. Uma reviravolta. Um trambolhão. Queda, não.
O que eu queria mesmo é dar cambalhotas! Percebem? Cambalhotas! Imitar corpos acrobatas. Dançarinos genuínos. Cambalhotas de irrealidades e mais tarde recordar os temporais vencidos no tapete a fugir. Na ausência de astúcias radicais, quedar-me pelas cambalhotas linguísticas. Como os políticos que se entretêm na mudança da convicção. Que cambalhotam sentimentos. Que na face da lei invertem sortes e fados.
O que eu queria mesmo é dar cambalhotas! Percebem? Cambalhotas! Ser pedra arrastada por águas luzentes e cristalinas no leito do rio. Sem ousar pensar que a chávena não pode voar. Porque só tem uma asa. E quando a perdeu, estatelou-se no chão. Em pedaços apartados e descompostos.
O que eu queria mesmo é dar cambalhotas! Percebem? Cambalhotas! De fúria e de fraqueza. De Sol morno. De vento fresco dado a cíclicas mutações. Como sopra, o tresloucado! Na sua ansiedade de resfolegar, nem repara que já despi os trajos de Verão.
Quando se tem ilusões, e o Sol teima em queimar enganos, o Inverno é uma pirueta com sabor. Como o arroz-doce da dona Perpétua. E é ali que vou iniciar cambalhotas de gargalhar. Fraternas cambalhotas vocabulares. As palavras não capotam, dão cambalhotas, duplo mortal encarpado. E geralmente caem de pé.
O que eu queria mesmo é dar cambalhotas! Percebem? Cambalhotas! E voar ao contrário.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]