17
Nov08
Espantalhar (os trapos velhos da noite)
Paola
A solidão surge agarrada ao espanta-pardais numa seara de trigo, no Verão, com feições de gente... Paralisado num aborrecimento de pau, ele demora-se na chegada do vento. Exige-lhe desvelos e crónicas de outras eras. E movimenta-se em ritmos perdidos no seu olhar. Serpenteia o coração e ouve o que ele lhe diz. E duas lágrimas desbotadas percorrem os trapos que vestem o espantalho. Para baixo, para orvalhar a raiz. O tempo ignora-o. Não o tem tratado bem. Dias sombrios, com noites de luz.
Eu desenterro silêncios ruidosos. Melodia de máscaras. Solilóquio de mim. Procuro-me… e sou ele numa mistura desenfreada de ecos e retalhos. Sou um espantalho dispensável e os pássaros fazem o ninho nas abas do meu chapéu. Sou um espantalho sem perigo, apenas o abrigo de pardais famélicos e sequiosos. Eu não quero a função de espantalhar. Se eu fosse um espantalho chamar-te-ia para junto de mim. Não assustava os corvos, nem os pardais, nem queria a cidade que se avista no fim. Escutava árias de amor com doçura na voz e gritava contra o silêncio. Desmentia os vultos que fogem de mim.
Larguei o destino. Ninguém vê que o tempo é que espantalha assim, que quebra e derrota. Apetece-me fugir dali, porém vou ficar aqui enquanto os piscos cantam no medronhal...
(Imagem da Internet)