Entrou na sala de aula com os pés desorientados pelo discurso a dizer. O rapaz carregava um sorriso refém do jeito de falar. Anunciava ausências e faltas. Sentia-se pobre de palavras. E o sotaque, professora? Magoavam-no chacotas e humilhações. A vida-madrasta continuava a açoitá-lo todos os dias de manhã. E pela calada da noite roubava-lhe o sono e empurrava-o para a rua. Às vezes, surgia-lhe, ao longe, uma imensidão azul que ele confundia com o céu. Um mar enorme e profundo. E nele via pedaços de esperança a boiar. Destroços de felicidade naufragados. Expectativas desertas e muitas mágoas à tona da água.
Sentou-se no lugar que é seu desde Setembro. Vi-lhe os olhos embaciados a escorrer medos pelo rosto apavorado. Adivinhei-lhe o corpo estilhaçado com fragmentos de pânico. E o sotaque, professora? O sotaque? Bom… O sotaque é seu. Confesso que gosto daquele barulhinho ritmado na personalidade da diferença. E, naquele instante, a minha opção bebeu o respeito pela voz do outro. E começou o discurso…
Escolhi este poema porque sim. Foi escrito por Vinicius de Moraes, um poeta brasileiro que eu não conheci. No entanto, acredito que ele me conheça. Os poetas têm destas coisas. Desventram-nos a alma e roubam-nas as emoções. E o rapaz discursava com a certeza que o poeta sabia que ele existia. Contou as saudades e queixou-se do mar que roubava as ondas no lado de lá para as trazer para cá. Que fazia tudo em surdina, por isso não sabia quando ia regressar. Garantia que lhe faltava o cheiro quente da terra. O Sol bronzeado ao entardecer. E as coisas. Aqui apenas tinha o nome.
Os outros sorviam-lhe as palavras com sabor a coco fresco. Outras a ostras temperadas com sal e limão. O rapaz discorria sobre distâncias e disjunções. Lamentos e mínguas. Dores e ausências. Pobrezas e emigrações. Tudo num sotaque, quente e emocionado, com acordes de sanfona nordestina. E foi Vinicius de Moraes o poeta que escreveu poema que eu escolhi. A assistência não se conteve. E escaparam sorrisos e aplausos.
E eles sairam da sala convencidos que Vinicius de Moraes conhecia o colega. Que escreveu o poema para ele. Que o fez de propósito. Obrigada, professora, por querer o meu sotaque… E eu, que estive lá e ouvi, gratifiquei-me ali.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]