Hoje não chove aqui. Os pássaros entoam chilreios de amor na folhagem da árvore que não baila ao ritmo do vento. Tão-somente, os caminhos enlameados provam a chuva que choveu. As pessoas passam, olham e não vêem que a chuva é tela, poema, mágoa. E as gotas, que persistem nas folhas, devolvem reflexos esboroados de afectos extraviados em Janeiro. A água adormecida no chão enlaça os brilhos e as cores que ali estão envoltas em queixumes públicos. São pinceladas espontâneas de desassossego ao ar livre.
Hoje, morrem-me as palavras de contentamento. Por isso, decidi pintar um quadro. Enorme, com muita luz e brilho. Que eternize momentos e olhares. Com cores que fixem impressões de mim, sem me importar que a realidade mostrada não seja percebida. Apenas permito ao Sol que pinte contornos incertos. Só ele pode matizar a incidência daquele instante.
O Sol olha para mim e escorraça-me dali, declarando a minha total falta de jeito. Atreve-se, o iluminado, que o colorido não é assim. Que estou a negligenciar a oposição de luz e sombra, o brilho … que o preto não cabe num quadro assim. Equívoco imenso! Apenas queria pintar emoções de mim… Quero lá saber que os pintores impressionistas não gostem do preto!
Fico na certeza das ondas que apagam as palavras que desenho na areia. Todavia, eu sei que não é de propósito… apenas se cumprem no tridente de Poseidon.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]