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ponto de admiração

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13
Jan09

Jacinta XII

Paola

fotografia de Jorge Soares

 

 

No silêncio, consigo ouvir a sua voz.
 
 Vamos… e tornaram a casa cheias de cumplicidades caladas. Jacinta despediu-se da amiga com um telefono-te mais tarde engasgado com um beijo apressado. Entrou em casa, como quem entra na ala principal de uma catedral desabitada. Ressoaram ecos de passos perdoados. Brilhos de olhos maravilhados com o altar. Rumores de confissões a haver. Ouviu um silêncio excessivo e parou. E, nesse instante, o som mais perceptível foi o seu. Com a nitidez de quem se desenha no ventre materno. Como se tivesse ressuscitado das pinceladas de um fresco. Lembrou-se que, há  tempos atrás, lhe agradeceu e depois fugiu. Agora, tem a certeza que viver é subir as escadas. Atingir o patamar e ter medo de cair. E tornar a subir. Maravilhou-se com os vitrais e esqueceu-se de pedir a absolvição. Mesmo sem pecado contraído, embora declarasse a desobediência.
 
No mais profundo e agradecido silêncio, atirou os sapatos para o canto e arremessou deliciosamente o corpo para o sofá. Pegou num livro e olhou para ele com a sensação de empilhar a sua própria vida nas mãos… páginas e páginas. Algumas ofereciam-se em branco para que ela as escrevesse. Com fotografias a preto e branco que testemunhavam um passado que soluçava ao seu colo. Com ilustrações de cores aperaltadas que lhe mostravam instantes dourados. Histórias que experimentou. Narrativas por terminar. Outras que nem viveu, mas desejou. Um livro de uma enorme biblioteca que ela não sabia se poderia percorrer… ler do princípio ao fim. Nem do fim para a frente… Por vezes, quase sempre, gostava de andar ao contrário. Com a vida, comentava. Um livro a que, todos os dias, virava uma página... memórias que perduravam, que a compunham como era. Aquele o seu preferido, por ter narrações que almejava concluir. Alterar o fim. Tanto que ambicionava expulsar personagens. Algumas palavras e muitas das interjeições que expressavam sentimentos perdidos. Outros desorientados. Um dia, murmurava, serei capaz de desmentir a paixão do verbo amar. Adormeceu consumida por tanto escrever… O livro acalmou-se no tapete vermelho que parecia ilustrar toda a sala. Uma cor que amava por vê-la paixão e coragem no fogo que lhe incendiava o corpo. Por lhe aquecer o sangue, transportando-a para a imortalidade dos afectos que experimentara no rubro das romãs que existem nas traseiras do barracão. E, sempre que as via da janela, tinha a impressão que as estava a saborear. Pareciam muito perto. Apenas os medronhos, os via afastar. Sobretudo, por se lembrar de um livro já lido. Ali, aprendeu a alegria do vermelho. Tal como a eternidade que retém. A história passava-se na China, recordava-se vagamente.
 
De repente, o gato, que dormitava no parapeito de mármore da janela, saltou para cima do sofá. Depois, confundiu-se nela. Ambos permaneceram na mais absoluta quietude, avassalados pelas palavras do livro que se detinha sobre o tapete. Juntos ouviram o silêncio da areia sempre que o mar a vem desposar. Olharam para o céu… e ouviram risos brilhantes nuns olhos verdes que não eram personagem. Por não serem de papel. Mesmo que de seda... Jacinta dormia tranquilamente no sofá. O felino animal duvidava do sossego. Por isso, vigiava-lhe o sono. Coisas de bicho.
 

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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