O Sol caía no olival, depois do barracão, à esquerda. Queimado pelo tempo com que se recreou a brilhar. Erguera-se cedo com o intento de iluminar a abóbada celestial. Mas por ser tão grande, logo minguou perante a missão. Talvez fosse esse o motivo pelo qual descia, pelo monte, em prantos dourados. Jacinta habituara-se a escutar-lhe o arquear ofegante. Ela sabia que ali ocorria a volúpia do instante. No exacto lugar onde o dia sucumbe aos pés da noite. Numa posição inversa à luminosidade que transportam. E cobriam-se com sedosos brocados matizados de negrume e claridade. No crepúsculo do deleite. Jacinta ouvia-lhes promessas de amor infinito. Depois do barracão que via da sua janela. E emocionava-se sempre que a noite, agrilhoada à efemeridade do tempo, encaminhava o dia:
- Farta os teus olhos de Sol! Inunda-os de luz e as trevas ficarão para trás. Nesse momento, os dias não serão que claridade. Na ausência das noites, o Sol esquecer-se-á que o ocaso é para cumprir.
Jacinta imaginava os dias e as noites, montados em doces cavalos alados, a errar por rudes e desapontados atalhos. Na vã tentativa de eternizar passados corroídos pela preguiça do tempo. Com a alegria de quem rumava na direcção do mais comível banquete, apesar do sabor do impedimento. E o anoitecer tornava-se castelo alindado. Um local sagrado. Talvez o último reduto para os amantes. Abrigo de anjos açoitados nas asas. Como aqueles que Jacinta acolhe em cima da cómoda, no quarto.
Um frio tremor fê-la acordar. Saltou do sofá sem destrinçar onde residia o real. Tropeçou no tapete vermelho. O livro dobrava-se na página marcada. O gato, que caiu de pé, somente eriçou os olhos por não entender o súbito alvoroço. Jacinta aproximou-se da janela e já não viu o Sol. Estou aqui! Os seus olhos assustados viram-se nos dele. Olhos de gato a espreitar nos meus! Declamou num pensamento estonteante.
Jacinta, minha ama adorada, eu sei-te tão bem. Aprendi a sentir o que sentes… a ver o que vês… aprendi a perceber que o dia a e noite se encontram no grito contido na dor dilacerante do desencontro. Não me vês, embora me olhes com o mesmo desmazelo com que dormes no sofá. Amo-te na beleza da tua voz, na ternura das tuas mãos… Gosto do modo desleixado com que me agasalhas.
Jacinta desorientou-se no olhar do felino… Estou louca! Louca! Concluía, na mais vertiginosa desordem de se desobrigar do bicho. Nunca, até então, ousara pensar… Era a sua companhia delineada numa fidelidade excessiva. Entendiam-se… Naquele dia os olhos do gato tinham um intenso sabor a jade. Estupidamente contentes.
Jacinta, minha adorada, eu sei-te tão bem. Não me vês… Olha como a minha cauda risca palavras no tapete vermelho da sala… como rasga o jornal que te aborrece. Repara como te escrevinho poemas que abalam pela janela e que tu não lês. No outro dia, lembras-te? Presenteei-te com um ramo de flores irreais… para que tivesses todas as cores e distinguisses a mais bela. Sabes, é sempre tempo de flores imaginárias. Em cada uma escrevi o teu nome… depois, amansei a minha boca nos teus olhos magoados. Olhei-te com a mesma apoquentação com que embaço o futuro. Eu sou, amiga, a tua voz no silêncio desta casa. A voz que te chama quando te ensarilhas na espera do toque do telefone. A tua dor é minha também. Por isso, eu salto pela janela e adormeço debaixo do chorão. Ali, junto ao rio…Gosto, porque gosto, desse lenço vermelho que te adorna o pescoço… lamento que não tenha sido eu…
Estou louca! Louca! Rumorejou, ao mesmo tempo que se reprimia no sofá. Ali, mendigou silenciosamente um tempo nutrido de horas cheias de suores apolíneos. O persa dourado enroscou-se sobre o tapete vermelho. De quando em vez, abria os olhos para ter a certeza que ela sossegara. Ancoraram na mais harmoniosa amálgama de cheiros.
Fotografia de Jorge Soares
7 comentários
jabeiteslp 26.01.2009
somos assim e por isso nos torná-mos gente de sentido e sofrimento e muito sentimento...
xinho da Covilhã uma boa semana mas nada de nostalgias...
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]