29
Jan09
pincelar
Paola
a papoila e o cardo
Depois de muito pensar, um quadro decidi pintar. Pinceladas desajeitadas percorreram a tela. Duas mãos desgraçadas desarranjavam-se na ganância das cores. Imprudentes! Sem entendimento do que estavam a figurar. Cores esborratadas, e mãos tão desarticuladas, mesclaram-se na determinação. Depois de tanto arrojo, tudo saiu na perfeição.
Um grande plano… verde-de-todos-os-verdes que a esperança tem. Papoilas rubras da cor que a decência contém. Nuvens da cor da branda-e-terna-leveza bailavam no azul-celestial, ao som dos acordes do vento, esboçando-se nas folhas de um enorme sobreiro castanho-tronco. Mais abaixo, um riacho esforçava-se por mergulhar num charco de água-nenuferada. Tudo espalhado na imensidão da tela.
Aproximei-me… alguém da cor-da-ausência estava sentado no silêncio da árvore da cor-de-sobreiro. Mais um retoque… uma pincelada em tons de esmeralda-verde… e terminei o retrato. Contemplei a construção… esmolei-lhe um beijo. Num pormenor pequeno. Ele olhou para mim e eu corri, corri e voltei a correr. Depois, inclinei o caminho, entortei-me num atalho e fugi dali.
Se eu soubesse pintar um quadro, retratava-o de corpo inteiro. Obrigava-o a dar-me um beijo. Sem cardos. Que fosse de amor! Que fosse! Mas trajado a rigor da cor-da-verdade. Só depois amarrava a tela à parede e sentava-me gulosamente no deleite de uma taça de arroz-doce.
fotografia de João Palmela