Jacinta XV [no baile de emoções]
Senhora… senhora… senhora… está bem? Nunca estive melhor, minha amiga. Respondeu coçando os olhos com a emoção que descansava serenamente. Na cama. O Sol entrava receoso pela janela. Que se escancarava para lá dos montes. Cautelosamente para não a aborrecer. No quarto generosamente amplo. De espaços livres e frescos. Viçosos como os sonhos que lhe revestiam os ombros. Voluptuosos. Boleados. Tenros. Como as folhas das árvores que porfiavam numa mansa agitação. A quietude erguia-se no brio da antiguidade. Jacinta exibia o requinte do seu olhar por todos os cantos do apartamento. O quarto era o que pensava mais seu. Dela. Inteiro. Explicava tudo na saga das gerações. Apenas acatava a formalidade. Saboreava. Queria. Mantinha a cama que já adormecera avó. A mãe. E ela que gemia num semi-coma de susto. O resto alimentava-se da luz que amolecia pacatamente no chão. E do vermelho correntio naquele corpo ainda a dormir o sobressalto. Duas janelas fartas com cortinados encolhidos. Por onde testemunhava aviões que se encaracolam em acrobacias arriscadas. Asas depenadas no arrojo do gesto. Fumos inversos. Três tapetes vermelhos. E muitas almofadas de alegria. Beatriz jogava silenciosamente às cartas. Paciências enroladas no monitor. Amizade emudecida nas derrotas desatentas. Paredes brancas. Escreviam-se em folhas de estuque pintado na plenitude da cor. Na nobreza da sua função. Sem perturbar… no emaranhado de palavras que contorciam silêncios pelas paredes. Apenas a porta se demorava na resignação da espera. Em movimentos entrelaçados. Com um enorme sorriso aberto. Na curiosidade de saber enrodilhado o lençol que se alongava na cama. Beatriz olhava. Ao mesmo tempo que se enovelava no silêncio de rendas e sonhos.
Ergueu-se numa gentileza sonolenta. Bela. Como se fosse manhã. E não era. Vamos. E foram. Jantaram na companhia da Lua. Na excentricidade do luar. Ao baile. Beatriz mordeu o entulho do espanto. Chegaram, já a música dava solavancos de ritmos esbatidos nos sorrisos bailarinos. Beatriz sorriu. E rumorejou que sim.
No baile, desapertou danças complexas. Só para espantar a audiência afilada nas cadeiras enegrecidas pelo bolor do tempo. Pela corrosão do presente. Pela incerteza do futuro. Por não saberem dançar ritmos de todos os tempos. Pela enorme incapacidade de discernir músicas dançáveis. Na sua cabeça, bailavam passos desencontrados porque pisados por pés intransigentes. Fragmentos das suas certezas rodopiavam perdidamente. Ao ritmo de melodias que escutava no carro. Com ele. E dançava. Dançava. No limite da vertigem. No auge da carnalidade. O seu corpo um piano moldado aos dedos do tocador. Numa escala de dó. Teclas soltas. Forçava os dedos. Deslumbrada no sol. Nos passos em construção. Assumidamente em si. Num gerador aleatório de abdicação. E o sol rodopiava raios com sabor a amor.E ela engolia. Bebia.
Depois cansou-se. Arrumou a meia-cauda do piano. Enfraqueceu a luz. Rebolou-se para o outro lado. Sem gemidos. Só adormeceu. Se o gato tocasse piano, falaria francês. Ballet, quem sabe. Teria uma língua apaixonada. Garras gastas à beira do rio. Beatriz durava no jogo de cartas… num descanso guardião.