Ler [no beco dos postigos amarelos]
No amaraledado de uma tarde banal. Azeda e fria, apesar do Sol que teima em caber nos quintais. Agradecem as árvores. Num ritual de nudez acalorado. Benzem-se as velhas em cruzes ziguezagueadas de dedos calejados. Raivas apodrecidas na lavoura da miséria. Praguejam exasperos ao Sol que demorou. Mesmo que em rodilhas esfarrapadas pelo beco dos postigos amarelos. Evidentes. Para que o rio lhes inunde o tempo. E as ondas arrombem os gritos aflitos que o tempo amansou. Porque escasseia numa míngua de acenos doentios. São cinco horas nas badaladas estúpidas da parede. As palavras emaranham-se nos objectos de outras histórias. E fogem pelas portas semi-abertas com postigos amarelos.
Um livro jaz na prateleira. Ao fundo do corredor. À direita. Escreve-se em folhas descoradas. Abandonadas na interrupção da leitura. Há muito que ela deixara a casa da avó. Esqueceu-se. Os poemas escorregavam pela badana da contracapa. Do fim para o princípio. Analfabeta de letras. Tanto lhe fazia. Mas gostava do cheiro do livro. Do pó que pingava e que se enliçava nas mãos. Fingia que lia. E sentia-a ali tão perto. Carícias. Mais um beijo. Tantos. E chorava a ilusão no papel. E o rio aquietava-se num silêncio profundo. Num minuto de sossego conivente. Apenas um barco passava. Porque os barcos passam. E numa derrapagem de versos sentou-se à mesa e leu o livro. Todo. Do princípio para o fim. Sem uma lágrima. O rio retomou a corrida para lá. O postigo encostou-se. E dorme tranquilamente. Numa cama de ferro. Com maçanetas que limpa aos sábados com celarina. Ou celerina. Apenas ouvia a palavra enrolada aos jornais. Ao domingo brilham mais. Os lençóis são brancos. Com pontas de arquitectura rendilhada.
Meia noite de vento expressivo. Uma madrugada de chuva miudinha. Eloquente. Memórias de um poema que se escreve na ausência das tuas mãos.