cair [na luz postiça de um candeeiro descorado]
de Jorge Soares
Ela segurava o mundo numa mão. Afagava-o com a outra. Com as duas, desordenava os sentimentos. Então, pôs-se a pensar. E não percebeu nada. Enleou-se no corpo amputado de um amor verde. Intenso na lealdade do rio. As palavras escorriam pelas paredes cansadas do dia. Era tarde. Tão tarde, naquela tarde em que o pôr-do-sol foi o discernimento. O limite de um alvoroço adocicado. A foz. O grito do rio que se arromba no mar. Agudo. Doído na inevitabilidade do seu correr.
Hoje, a tarde ainda é mais tarde. Ao fundo, não discerne os vultos que lhe vestem a memória. E o seu corpo estremece de paixão. Envolve-se nela. Ousa querer saciar a sede com que acordara. O vento trouxera-lhe a sinfonia dos pardais. E ela ardeu no impulso do voo.
Hoje, no instante em que os seus olhos se tocaram, ela ouviu os pássaros. Que chilreavam no telhado. E teve a certeza que há rios que não desaguam no mar. Porque correm ao contrário. No silêncio do Sol.