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ponto de admiração

ponto de admiração

19
Nov08

costurar

Paola

                                                                

 da Internet

 

 

 

Olhava para mim com olhos descontentes. Assustados com necessidades inventadas. Imprescindíveis. Da sua boca brotavam palavras tricotadas em ponto alentejano. Rendas tecidas com linhas encomendadas na loja da esquina. Frases urdidas com os dedos, ao serão, e uma agulha de metal. Com a pronúncia adequada. A entoação ajeitava-se nas paragoges de algodão e seda. Por mais que lhe provasse a minha falta de aptidão para a arte, ela dizia sempre que não. Chuleava palavras de desacordo. Cosia intenções descontentes. E eu, que estava ali, alinhava verdades rendilhadas. Eu não! Que as meninas não eram obrigadas a costurar. Que o tempo da costura já passara. Mentira, tesourava ela. O saber cabe em qualquer lugar. Ponto cadeia! A verdade é que tentei. De imediato me desembaraçou dali. Que eu não tinha jeito nenhum. Apostrofava que haveria de chegar o dia lhe daria razão. Ainda bem que não! Caso contrário, não chegariam as linhas, nem os dedais. E eu nem culpa tinha que houvesse lá em casa uma máquina de costura. Não tinha!

 
Eu sabia conjugar o verbo costurar nos tempos e nas pessoas todas, excepto no eu. E para a regozijar exibia-lhe casacos e camisolas que eu tecera com lãs coloridas. E lençóis com bainhas abertas. Um dia, dei-lhe um vitral enorme. Contornos a tinta-da-china e colorido com cores prateadas roubadas aos chocolates. A perplexidade foi notória. Entre a admiração e a desilusão interpôs o costurado. Os botões e as bainhas. Mas lá ia dizendo que o saber não ocupava lugar. Ao menos isso. Ao menos???? Eu não tinha jeito para aquilo! Nem tenho.
 
Sempre que chegava a casa, dava-lhe conta das minhas aprendizagens escolares. Do empadão ao ponto cruz. Narrava histórias generosas em que misturava a História e a Geografia com os rissóis. A leitura com a escrita E ela estava sempre à minha espera para saber. Hoje, choram as memórias dessas tardes. Dessa época, sobram-me destrezas manuais que já não sei. Não preciso. Foi um tempo que o tempo descoseu.
 
Agora, que estou aqui, pergunto-me se as meninas partilham saberes com as mães. Se ambas estão interessadas em saber. Se as meninas de agora têm vontade de aprender e o que sabem fazer? 
 
Se eu pudesse debruava a vida da minha mãe a ponto grilhão. Muito apertadinho e muito certinho. E ela estaria aqui a sorrir para mim. Pela ignorância do meu costurar.
 
 
 

 

07
Nov08

vozear

Paola

 Ao sábado ando por aí. Sem arames farpados disfarçados de tempo. Sem caminhos aforquilhados por entes indesejados. Ao sábado só faço o que quero. Por vezes, não faço nada. Decretei que este é o dia de mim. Porque o nada é tudo, quando me coíbem vontades e me algemam a decisões. Ando e oiço vozes que amo. Chilreios e gargalhadas de rir. Francas e leais.

 
Ao sábado como arroz-doce na Dona Perpétua. São gostos e prescrições rejeitadas. Amanhã, cumprirei o cerimonial. Farei tudo com mais exuberância e vozearei por aí que é sábado. E que urge ir a correr! Para lá. Onde todos seremos poucos.
 
Neste sábado, eu vou lá estar. Para bramir contra a miopia de quem já não discerne a realidade. Porque estão cada vez mais disformes, deselegantes e ferozes. Há portentos assim!
 
Neste sábado, vou lá estar. A vozear desagrados e muitos desabrimentos. E só me calarei, quando a voz me começar a doer. Mesmo que em silêncio. Mesmo que ninguém me coiço. Sábado vou vozear!
 
 
05
Nov08

exteriorizar

Paola

 de Jorge Soares

 

A flor exterioriza a perfeição. E procura o Sol. Sem modéstias estéreis, sem alardes insignificantes. Ela sabe que a excelência mora ali. Desnuda-se de cores que não aprova, decide-se pelas que quer. Assume o seu garbo e não esconde o enfado quando não percebem que a sua elevação é natural.

 
Preocupa-a a fragilidade, mas agrada-lhe a seriedade. E sempre que o vento chega, diz-lhe que sim. E amam-se até ele a deixar. Ela conhece-lhe as astúcias. Ele voltará. Volta sempre… Para lhe gabar a excelência. Às vezes fica. E, ao seu lado, acorda apaixonado por tão admirável beleza. Inebriado com o perfume do seu corpo. Ela sorri. Torna-lhe que sim. Que germinou assim.
 
Aflige-se com a espontaneidade, no entanto gaba a verdade. E sempre que o vento acontece, murmura-lhe que sim. Que agrilhoado não o quer. E pede-lhe que, à noite, chame o luar. Ele faz-lhe a vontade e começa a cantar. Jura que vai plantar um jardim para ela brilhar. Ela murmura que sim. Que rebentou assim.
 
Sempre que a flor acorda de manhã, revela a certeza. Que reside no facto incontornável de ela ser assim. E conta que surgiu de uma minúscula semente que o vento derramou. Que o processo foi genial, tudo muito inato e que apenas precisa de água para sustentar a raiz.
 
Sempre que o vento desperta, mostra o movimento. De flores apressadas, muito enraizadas a cumprir a missão. Empenhadas na bajulação, nem percebem a sua desconsolada condição. O vento não resguarda flores de plástico, que não é dado a coacções desusadas. Nem a sofisticações forjadas e muito laboratoriais. E a flor segreda-lhe que sim. E narra arrelias ampliadas que se exteriorizam no jardim.
 
A flor contenta-se na exteriorização da sua lealdade. Naturalmente assombrosa. E eu não percebo por que razão as pessoas preferem as flores artificiais. Tanto, que acodem como elas. Na vassalagem ao Sol. Na exteriorização de vontades que não são suas. Nem sabem que as flores artificiais dispensam a luz, a água e a pátria. Movem-se por imitação.
 
E o vento começou a soprar...
 
Depois de algum tempo aprendes que o sol queima se ficares exposto por muito tempo, e aprendes que não importa o quanto tu te importas, algumas pessoas simplesmente não se importam...
 

Aprendes que não importa em quantos pedaços o teu coração foi partido, o mundo não pára para que o consertes. Aprendes que o tempo não é algo que possa voltar para trás, portanto, planta o teu jardim e decora a tua alma em vez de esperares que alguém te traga flores, e aprendes que realmente podes suportar... que realmente és forte e que podes ir muito mais longe depois de pensar que não podias mais.
 

 William Shakespeare

E a flor pôs-se a pensar...

 

29
Out08

borboletear

Paola

 de Jorge Soares

 

A borboleta borboleteia-se em movimentos singulares. Subtilezas de bailarina. Quando sobe nas pontas das suas asas encontra uma leveza sublime e uma delicadeza ímpar. Invejo-lhe a doçura das cores compostas nas escamas profusamente emolduradas em complexas colorações. A graciosidade do andar. E quando descansa, a borboleta dobra as suas asas para cima. E faz preces de polinização. Vagabunda do Sol. Aventureira da vida, esvoaça no limite da beleza. No casulo, acontecera magia enfeitiçada e, num momento de singular benignidade, explodiu uma insólita excelência. De flor em flor, graciosamente. Sem compreender que o belo é efémero. Que a flor vai definhar e sucumbir. E ela é uma presença fugaz. Ao sabor do Sol que no Inverno não tem calor. Apenas ilumina dias minguados e grisalhos. O amarelo está desbotado. E a borboleta não sabe que, no Sul e no Norte, o Inverno não acontece ao mesmo tempo. O Sol também se borboleteia. Acorda todas as manhãs. Ciclicamente. A borboleta borboleteia como se fosse o último dia. Pisa o palco uma só vez, sem direito a bisar. A borboleta desconhece a força da sua fragilidade. Quer voar, voar perdidamente aqui e ali e mais além. Como uma alma que se liberta à procura do infinito, porque se sabe mestra na transformação.

 
E eu, que olho a borboleta com olhos estúpidos de deslumbramento, não concebo a destreza. Nem a leviandade de quem vive a saltitar. Invejo-lhe o casulo que foi seu e que desbaratou. Na metamorfósica ânsia de querer volutear. E já com as asas feridas pelo vento, irrompe na mais admirável voluptuosidade, modificando-se com a vida. Sempre a borboletear. Sente o equívoco do ar nas asas e corre para investigar a função das mudanças. Para compreender processo da metamorfose organizacional. Que a sua foi natural.
 
A solidez do meu casulo ostenta brechas e fendas. Hiatos tamanhos. A claridade trespassa e estonteia-me. O vidro do casulo estilhaçou-se bruscamente… Há destroços. Asas que sucumbem. Já não vejo sonhos a desenhar passos de dança delicados. Apenas sorrisos esboçados. Movimentos tracejados. Vacilantes e perplexos.
 
E eu só quero esticar as minhas asas contundidas e desaparecer no ar… Precipitada ambição. A avestruz é uma ave que nem sabe voar!
 
24
Out08

divinizar

Paola

da Internet

 

Há culturas abundantemente abençoadas. Talvez uma opção genética, quem sabe cultural. Ou simplesmente porque sim. E não me digam que se deve um a desenvolvimento psíquico muito incipiente, apenas suportado pela  percepção da realidade física circundante! A verdade é que há quem se dê ao luxo de ter um deus para cada oração. Já os romanos e os gregos haviam feito o mesmo, por isso não estranho. Facto que atesta o seu enorme bom senso. Da particularização de cada deus só podem resultar benefícios, mercês e graças muito celestiais. Verdade que dá garantia de apoio personalizado e individualizado. Os deuses, masculinos, femininos ou de género indefinido, cumpriam bem a sua função. Apesar das hierarquias. Apesar da glória. Por vezes, erravam e davam-se a promiscuidades divinais. Até fatais e muito disputadas. À margem da lei. Por isso, eram castigadas.

 

- Ícaro! Ícaro! Ícaroooo!, chamou o pai muito alvoroçado.

 

Não obteve resposta. E lá ao fundo, no mar, os seus olhos estupefactos encontraram as penas que flutuavam nas ondas. Nos desencontros da maré. Não lhe foi difícil descobrir onde Ícaro caíra.  Morto! O rapaz morrera afogado na sua desarvorada ganância. Santa ingenuidade! Não percebeu, o garoto, que as suas asas eram de cera. E que o Sol não se alcança. Nem se olha de perto. E que voar, sem ter asas para o fazer, exige protecção sobrenatural. Descuido incipiente!

 

Os enganos dos deuses aumentavam sempre que dos humanos se aproximavam. Indigência inexplicável e sem qualquer ganho imediato. Até lhes retirava importância. Não careciam de tanta dependência. Nem tão-pouco de submissão. Se não abandonassem Olimpo nada disto teria acontecido. Olimpo era o monte onde viviam as divindades. Um espaço etéreo, porém nada que se assemelhasse a um luxuoso monte alentejano. Dos mercantilizados nos jornais. Com uma área de muitos hectares, entre sobreiros e montados e com muitas propriedades empoleiradas no cimo das colinas. O luxo e a sofisticação ofuscam Olimpo. Só assim se aceita a escapadela. Coisas de deuses, já que o Olimpo é na Lua.

 

Os romanos andaram por cá. E eu não entendo, por que razão não lhes pilhámos os deuses. Tantos que eles tinham, meu Deus! Só por cortesia e muita parcimónia. Até a pedir somos pobres. Valha-me Deus! No entanto, há muitos humanos, descontentes com a opção monoteísta, que se crêem divindades. Se algum vier ter comigo, oferecer-lhe-ei um par de asas de cerume. Multicores para que não subsistam dúvidas. E dir-lhes-ei que neste país não há lugar para o politeísmo.

 

E eu, para que se cumpra o culto de sábado, suplico a Ceres que ampare as searas. Rogo-lhe protecção divina para o arroz-doce da Dona Perpétua. Divinal com canela.

 

23
Out08

engadanhar

Paola

 da Internet

 

Há muito tempo, gadanhava-se a valer. A vida trabalhava-se na agricultura. Na dos outros que tinham terras imensas. Quintas e quintais. Herdades e montes. Lavras de arroz e searas de trigo. A vida era pintada de amarelo-esverdeado. Escuro, quase preto. E quando a fotossíntese se cumpria era uma alegria clandestina. Iniciava-se a cadeia alimentar. E a fome grassava por ali. Sem esse admirável fenómeno seriam incapazes de sobreviver. Por carência de verde. Já Aristóteles dizia que as plantas necessitavam do Sol para se esverdearam à vontade. Só que o Sol não sabia que a gadanha era uma criatura nefasta. Dois cabos menores seguiam sempre a par. Por isso, a lâmina feroz. Cortante e muito torturante. Exigia arte e engenho, manuseio de quem entendia do assunto. Tudo era feito com muito cuidado. Às vezes, apenas para desorientar os incautos, mudavam-lhe o nome. Tratavam-na por tu, o que dizia da intimidade. Ou não. E a gadanha tanto respondia por gadanho como por alfange. Mas acudia. E cortava. O trigo, as canas, o junco, a erva. A daninha e a outra. Não entendia as diferenças. Apenas o verde. Então, gadanhava tudo o que serpenteasse verdura. Alguns lavradores munidos da alfaia agrícola, e por tanto a usar, até se persuadiram que morreriam a gadanhar. Sempre a gadanhar, acabaram por entender que aquilo era só um adorno em mãos erradas. Sujas e enjoadas. Inquinadas por bebedeiras de comando. Convencidas que a cultura não era popular. E mascarados de cavaleiros apocalípticos, trouxeram a peste, guerra, fome e morte. Esqueceram-se que não podiam causar danos à erva. Nem às árvores. E o verde sobreviveu nas bocas moribundas dos corpos. A terra floreou.

 

Nos tempos actuais, as ceifeiras mecânicas substituíram a tradição. A gadanha esgadanhou-se na prateleira do museu. Na adega, talvez no barracão. É sobras de dias gastos a chorar as canas esquartejadas à beira do rio. A gadanha é termo afectivo. Património das minhas memórias visuais. De longe, apenas de muito longe. Acabou-se a possibilidade de gadanhar. Porque se foi, a gadanha.

 

Hoje sinto-me esgadanhada pela indolência de uns. Ignorância de outros. Inoperância de muitos. Inépcia de quase todos para labutar com a gadanha. Acintosas vontades. E por mim que estou desassossegada com tanta falta de jeito.

 

E é por ver tanta gente a gadanhar que não percebo a razão de estar assim. Muito engadanhada. Faço riscos na areia, ao acaso. E lá ao fundo, vejo linhas inúteis. E percebo que gadanhar é profissão sem futuro. Certamente, por falta de jeito.  É que as mãos também se enganam.

 

20
Out08

beijar

Paola

 O Beijo, de Rodin (Internet)

 

As pessoas estão a morrer à míngua de afectos. A mercantilização das sociedades é no que dá. As avós têm mais que fazer. É trabalhar até morrer e os contos estão nos livros. O problema é lê-los. A paciência esgota-se antes do final do mês. As palavras são difíceis, a gente não fala assim. E até já se perdeu o hábito de escrever. Os filhos e os netos, que sobrinhos, primos, afilhados e aparentados são, vivem na rua. Até quererem, até poderem. Só que na rua há carros e alcatrão sem espaço para jogar. Os meninos estão desamparados e dizem-se órfãos de afectos. Não sabem amar. Tão pouco acariciar e já nem brincar. Estão nervosos. Muito hiperactivos e pouco receptivos. Mas tratam o psicólogo por tu. Os adultos silenciam-se com medo de errar. Ou por não saber. Ou por pensar que chega o jantar.

 

             - Os pais não têm tempo…

- Não! Tempo têm, mas não sabem explicar.

- Eu não tenho pai…

- Então e eu? Nem tenho mãe!

- Eu tenho! Faltam-me os avós.

 

Foram comentários que ouvi. De bocas que crescem famintas de saber e aprender a amar. De bocas que sorriam maliciosamente:

 

- Quando não sei, pergunto aos amigos.

- E se eles não sabem?

- Há livros… e filmes e Internet. Tenho televisão no quarto, computador…

 

Foram observações que ouvi. De meninos resignados. Alguém os convenceu que os afectos, o amor, a sexualidade, a paixão e a desilusão se aprende nos filmes que eu não quero dizer. Porque porcos, feios e maus. Arquitectados. Montagem mentirosa e remunerada que não é capaz de dizer aos meninos que amar é natural.

 

Talvez seja por tanto querer aprender que eles chegam à aula perdidos de sono. Só que as cadeiras são desconfortáveis e eu não sei como é que eles elaboram a realidade nas suas cabecitas. Nem que realidade. Nem vejo necessidade para tamanha banalização do sexo. Nem nunca senti falta de livro de instruções. De prescrições simuladas e de receituários semelhados. Sou pelo sentimento. A dois. Um beijo dá-se, não se pede. Nem vale espreitar!

 

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários. 

                                                                                                 Carlos Drummond de Andrade

 

16
Out08

enrodilhar

Paola

de António  Correia Silva

 

Os pés da minha avó peregrinavam afoitos pela areia. E sempre que desagradados, recusavam os chinelos. Todos os dias, pela manhã, se cumpria o ritual. A bilha, muito direitinha em cima da cabeça, imaginava-se divindade num andor de procissão. Na cabeça da minha avó poisava uma rodilha de trapos. Farrapos de restos. Panos de cores desmaiadas. Tecidos urdidos por mãos enroladas. Uma rodilha abençoada. Auréola protectora. E a bilha anichava-se nela. Às vezes, trazia um raminho de camarinha com perfume de mel. Ou de alecrim.

 

De lá para cá, o corpo dela não se enrodilhava na saia, por isso não tropeçava na areia. Leve, apesar de cansada. Ágil apesar dos barros cheios de água. Raramente o pote. Apenas na vida que a incitava a dançar. E ela pensava que a rodilha lhe amarrava a alma. E a fixava no areal. Para lhe sufocar desabafos e a impedir de chegar ao horizonte. No outro lado do Monte. Enrodilhou-se na ternura e numa rodilha de calor. Sem raiva, nem zanga. Sem se sentir ofendida. A vida é assim, acrescentava. Conformada. Sem parecer enrodilhar-se num equívoco. A rodilha era tão-somente um amparo.

 

A rodilha enrolou-se. Torceu-se cansada. Enroscou-se no tempo e partiu. Não quis ser pano vadio, embaraçado e torcido. Há uns tempos que se confundia com os mexericos que ouvia. E para não acabar os seus dias na condição de esfregão ou pano de limpeza, enrodilhou-se. Venceu com argumentação e partiu.

 

Dizia que certos trapos só a queriam enganar. Planeavam ser rodilha de decoração. Ou argola de guardanapos. E acrescentava que já não tinha idade para tantos enxovalhos. Que ninguém honrava a tradição. Nem havia respeito pela separação das águas. Que não estava aguentando. Achava-se bastante assarapantada. É que a minha avó era alentejana.

 

E eu, não sendo uma rodilha, não entendo que me queiram transformar em sogra para transportar cacos de barro encharcados em desarrumação[endif]--> .</style>

 

 

 

13
Out08

esgaravatar

Paola

de Paola, galinheiro

 

Esgravatar é um verbo necessário. Se não o fosse, nem existiria. Essa coisa de se pensar que não fica bem e tal, não se justifica. Que esgaravatar é próprio das galinhas, não me convence. Os pobres galináceos têm objectivos individuais a perseguir. Por isso, a passam o dia a esgravatar e a comer tudo o que encontram. Quer se trate de minhocas, sementes e frutos e migalhas. Não me parece nada bem é que se contentem com migalhas. Paciência, isso é com elas. Até o galo esgravata. E é um senhor! Canta é muito melhor, logo pela manhã.

 

Esgaravatei para nascer, e que trabalhão dei à minha rica mãezinha, continuei pela vida fora, que já vai longa, e continuo a fazê-lo. Mas não sou galinha. Apesar de cacarejar de vez em quando.

 

Esgravato para remexer a terra. E que perfume ela tem! Para atiçar o lume. Com tenaz, que não me quero queimar. Às vezes queimo. Esgaravato nas gavetas. Só quando não me lembro onde enfiei as meias pretas. As outras sei, porque nem as comprei.

 

Esgaravato o fundo do tacho. Sabe tão bem! E esgaravato perguntas e respostas para mim. Também para eles. E gosto tanto! E esgaravatar confunde-se com saber e aprender. Pesquisar e perguntar. Solucionar e responder. Pensar e relacionar. Ai, que prazer! Esgaravatar nos livros. Bicar as palavras. Debicar as frases e transportá-las no bico para mais tarde saborear. E esgaravatar soluções. Esgaravato porque não sei. Porque vivo e canto incertezas.

 

Esgravatar soa a arcaísmo. A estrangeirismo. Ai, o que é isso, professora. Que palavra tão ruim. Deixe lá! Já ninguém fala assim. Eu continuei a esgravatar naquelas cabecitas nuas de vocabulário. Despidas de empenho linguístico. Se as galinhas é que esgaravatam, a metáfora e a conotação são de nula importância. E concluem que a denotação é que sim. O dicionário faz a decifração. Sem bem entender que o problema não está no verbo, porém na acção.

 

É minha convicção que, cada vez mais, se esgaravata menos. Ou já se compra feito e empacotado, de preferência numa lata com abertura fácil, ou não resulta. É que esgaravatar dá mesmo trabalho. Outro verbo que eles não gostam de praticar. Nem, como as galinhas, esgaravatam para comer. Apenas porque não têm fome de saber. 

No que me diz respeito, vou continuar a esgaravatar ou esgravatar que dá no mesmo. Sobretudo por mim. Só porque gosto de lhes dizer que decorar não é sinónimo de esgaravatar. E que se deve esgravatar todos os dias.

 

19
Set08

calar

Paola

Salvador Dalí  A persistência da Memória

 

atropelos sem memória

 

Shiu! Da minha boca jorram descansos hesitantes. Usurpados e clandestinos. Dos meus lábios não escorrem palavras azedas e desconfiadas. Shiu! Oiço uivos de gente assustada. Melopeias atrapalhadas na toada dos caminhos. Andamentos vertiginosos. Shiu! E lá ao fundo, um pássaro executa primorosamente o adágio da manhã. Engulo a tentação de respirar. E do pátio regressam vozes aflautadas. Euforias guinchadas. Abraços perplexos. Bocas escancaradas vertem pedaços de mar e de sol. De ócios enérgicos. E olhos suspensos colam-se às janelas. Shiu! Escuto portas aferrolhadas que se desfecham.  Chaves que tilintam cuidados de última hora. Sorvo ânsias de falar. Segredo salvações, no intervalo, empoleiradas ao portão. Shiu! As vozes passeiam felinas no corredor. Atropelos cinzentos, mesclados de cores do Verão. Desenham-se escoltas no parapeito da janela. Shiuuuuuuu! Estou oculta. Ninguém sabe que estou acantonada, ali! Não quero ser tela surrealista. Representação irracional, longe do mundo real. Shiu! Vejo e escuto. Obsessões humanas donde escorre a passagem do tempo e da memória. Da memória que se esgota. Do tempo que tem olhos. Não sei se vê. Shiu! Estou refém de mim. Aqui! Com recordações. Sem elas, não há expectativas. Porém, o tempo desvirtua-se. E cala-se, também. Flacidamente. Como os relógios. Shiu! Estou sentada. Shiu!

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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