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ponto de admiração

ponto de admiração

25
Abr13

memórias[quando as ervas rasgavam o chão]

Paola

 

 

 

Nada vos direi sobre o voo dos pássaros à volta dos figos. Dos pardais e dos piscos empoleirados na figueira na disputa dos frutos. Calarei a correria na direção das cerejeiras que perfumavam o vale. Não, nada. Não se fala de um rio que corre em espontâneas e contentes marés de azul. Em abraços hesitantes, calados, preservados nos ninhos das garças. Nem dos gritos das gaivotas e muito menos das cegonhas. Nem afirmarei que vi os ninhos cuidadosamente erguidos na torre da igreja. Vou calar a melodia que os sinos tocavam à tardinha. Nada direi das papoilas que rasgavam o chão na louca exuberância do vermelho. Do beijo que caiu.Não pronunciarei uma palavra sobre as mãos dela. Não vos mostrarei o sorriso que plantava nos vasos.Nem vos mostrarei as rendas que decoram as toalhas de rosto. Não vos maçarei com passados que escorregam ao meu lado, nem do alecrim que chora nos meus olhos.  Numa doce e amena brisa que me beija a pele. Nada vos direi. Nada. Porque não vos posso dizer que acordei com uma inexplicável vontade de ver. Estender os olhos pelo chão. Ir para lá e entoar versos coloridos e cintilantes. Até às raízes. Apanhar os cacos. Agarrar o corpo e saborear a alma. Ignorar a forma e pintá-los de azul. Na organização das marés. Na certeza que as minhas memórias não são de ninguém. Sou eu que lhes concedo a cadência do uso. Nada direi. Na desordem do tempo.


12
Abr13

fazer [bonecas com tiras de amor]

Paola

 

Sinto saudades de uma época que que já não tenho. De vez em quando, lembro-me. Sem saber se são memórias que trepam pelo tempo. Ou ofertas de episódios que se perderam na efemeridade dos dias. Se são primaveris momentos de saudade. Ou meras circunstâncias que descem em meu auxílio. Não sei. Mas juro que os tive. Que os comi com o mesmo deleite com que me enrolo em mim. Garanto que foram meus. Não me poderia lembrar do que não tive, penso num franco e generoso sorriso que chega até lá.

Naquele tempo, sobravam meias rotas, passajadas e gastas. Outras, escorriam malhas. Danos irreparáveis. Era com as meias que sobravam que a minha mãe me enchia de alegres brincadeiras. Das suas mãos, saíam, normalmente ao serão, bonecas maravilhosas. Depois vestia-as. Penteava-as e eu brincava com elas num orgulho desmedido. As bonecas da minha infância foram feitas de trapos. Tiras de amor e linhas de ternura.

Um dia, não me lembro exatamente qual, surgiu lá em casa uma boneca nova. Orgulhosa. Com um olhar distinto. Lembro-me do exagero da sua boca escarlate. Recordo a inquietação com que recebi o presente. Corri para a rua, gritei, saltei. Tenho uma vaga ideia dessas hipérboles infantis. Passado o instante, isolei-me com o meu recente brinquedo, uma boneca que não era de trapos.

Debaixo da figueira, aquela que generosamente dava figos moscatéis, defini o território. Uma casa desenhada na terra. O quarto e a cama. A boneca adormeceu. E eu olhava-o com um profundo instinto maternal. Embalava-a e cantava para ela cantigas de adormecer. Não tenho a noção do tempo que estive assim. Nem sequer sei se lhe doei um nome. Tenho pena de não a poder tratar pelo nome… Havia a boca! Tão vermelha! Era a boca que dificultava a nossa relação. Dava-lhe um ar de boneca crescida que não me agradava.

Subitamente, começou a chover. Uma chuva que tombava numa verticalidade severa e assustadora. Peguei nela ao colo e corri para casa. Foi um trajeto de ziguezagues que fiz em pouco mais de cinco minutos. Chovia intensamente. Pancadas torrenciais que provocavam medos na minha cabeça e na dela. E eu corria. Entrei em casa escorrendo gotas de desalento. Gotas de brincadeiras atrapalhadas. E lamentei a sorte.

A boneca estava desfeita. As suas feições tinham-se alterado sem que eu percebesse. Recordo um buraco enorme na face. E chorei a desgraça. Ela estava doente, moribunda, acabada, semimorta.

Não tiveste cuidado. As bonecas de papelão não podem apanhar chuva. Fiquei agastada, humilhada com a informação. E eu sabia lá que o raio da boneca era de papelão? Papel ou qualquer material do mesmo género? E o banho? Eu já lhe tinha dito que tomaria banho comigo e ela concordara…

É por tudo isto que, ainda hoje, prefiro as bonecas de trapos que a minha mãe fazia para mim. Conhecia-as bem. Nunca me passou pela cabeça dar-lhes banho, afianço. É por causa delas que tenho saudades das mãos da minha mãe. Mais resistentes às tempestades. E do jeito que ela tinha para lhes compor o olhar...


 

28
Mar13

Subir [na organização dos laços]

Paola

Quando ando por aí, não paro. Vou sem rumo. Subo montes. Depois desço. Às vezes volto para trás. É do cimo que espreito o rio. Ato o tempo ao chão e corro ao ritmo das letras que se desenham numa serena e doce melodia. Recito os segundos. Respiro as marés. E perco-me no afago das mãos.

Laço a lua e os lugares. A leitura e o luar. Laçadora de laços, laço as lágrimas, laço o olhar. E com laços labuto. Com laços limpo a lama. Com laços abraço as luzes. Na descida me completo. Quando ligo os lagos e as lendas. As mãos e as rendas.

Subo os montes para ver os novelos de linhas e os dedos. O sorriso que chega pela manhã com a toalha de linho ou naperon. Eram tantas as rendas! Os tamanhos e os nós.

Não me digas nada. Estou ocupada a andar.


(Foto da Internet)


01
Jan13

saboroso ano novo [na ausência do rio]

Paola

As despedidas são sempre tristes e esta não era excepção.

As férias estavam no fim, as malas feitas, a casa arrumada, o carro atafulhado de tralha. É impressionante o volume de memórias e lágrimas não derramadas que se consegue arrumar no porta-bagagens de um Toyota Corolla!

Antes de partirmos rumo a casa, um último adeus à praia dos meus afetos.

O dia despedia-se da luz. O céu cobria-se de farripas de algodão doce que dançavam embaladas pela suave e amena brisa, num festival de cores. E, de repente, desenhou-se um arco-íris do tamanho do céu. Por cima de mim, o firmamento era de um azul anilado, passando por um tom verde amarelado para terminar num laranja avermelhado que se estendia até onde a vista já não conseguia ver. E eu passava por baixo, na alegria das cores. Escondida sorrateiramente atrás das nuvens, uma estrela abria os seus braços para mim, aconchegando-me no seu colo e atrasando a partida. Aquele era um lugar que existia a prazo e, por isso, havia que prolongá-lo no olhar.

Ao fundo, recortado na linha do horizonte, o monte brotava suavemente, como se um pintor tivesse tido uma doce perturbação e o delicado pincel lhe tivesse escapado momentaneamente das mãos. E o lugar surgia, concebido por um ser superior, numa fresca representação bíblica.

Depois, só tons de azul. Atalhados por uma estrada de um amarelo muito cálido que o Sol abrira só para mim, corri até ao areal que percorri descalça. Uma suave espuma vinha beijar-me os pés. Falava baixinho. Num murmúrio delicioso, um lamento desesperado que me invadia e perturbava, mas que quero reter na memória.

No areal, os botes sobreviviam despidos de brilhos de outros tempos. Era desolador vê-los assim, vazios do seu esplendor, da algazarra das crianças, do ensurdecedor barulho das agulhas de croché da avó, das conversas das “tias”. Do balde negro que chegava com chocos, lulas e robalos.

Segurei-me àquele cheiro. Não era um cheiro qualquer, de uma qualquer praia, de um qualquer rio. É o meu bálsamo. Inconfundível. Reconhecê-lo-ia em qualquer lugar e é dele que eu sinto mais falta quando não estou ali.

É um misto de mar, com cobertura de algas e recheio de espuma, mais ou menos como as lulas recheadas que a minha mãe servia no dia de ano novo. Porque um poema não para no fim. Porque um verdadeiro poema vive eternamente.


(imagem da internet)



22
Dez12

no restolho das vozes[na fantasia das cores]

Paola


Nos dias cinzentos que correm enfraquecidos, na dor translúcida que me trespassa, na indecisão fina que me afoga, na esperança caída no chão de terra batida, queria amansar a dor. Remover a incerteza e reavivar a cor do sol. Colorir os dias, a lua e a noite. Disputar o brilho das estrelas e rir com elas. Queria ser alma, ser gente e velejar até lá. Reaver a casa grande pendurada na areia com janelas prenhes de luz. E as riscas azuis que se rebolavam no calor branco que cobria as paredes. Queria os mistérios que permanecem espalhados na duna. As toadas dos passos. O restolho das vozes. Queria os ninhos de sonhos que vogam pelo azul do rio. As marés, as ondas e o bote. O aroma da canela naufragado nestes dias frios e cinzentos.

Se agora fosse natal, a minha escuridão desfazia-se prolongadamente num abraço profundo. Das janelas destes dias cansados e frios, trepava até ao céu. Fundeava o tempo e privava-o das estrelas que ele me roubou. No Natal.

 

09
Dez12

Carta para longe [às vezes lembro-me de ti, dele e de nós]

Paola

 

O tempo vai um encanto,
A Primavera ’stá linda,
Voltaram as andorinhas…
E tu não voltaste ainda!…

Porque me fazes sofrer?
Porque te demoras tanto?
A Primavera ’stá linda…
O tempo vai um encanto…

Tu não sabes, meu amor,
Que, quem ’spera, desespera?
O tempo está um encanto…
E, vai linda a Primavera…

Há imensas andorinhas;
Cobrem a terra e o céu!
Elas voltaram aos ninhos…
Volta também para o teu!…

Adeus. Saudades do sol,
Da madressilva e da hera;
Respeitosos cumprimentos
Do tempo e da Primavera.

Mil beijos da tua q’rida,
Que é tua por toda a vida.

     Florbela Espanca, O Livro D’Ele


01
Nov12

mais nada [é a chuva que me devolve o tempo]

Paola

 

   Hoje, vou oferecer-te o meu suor gota a gota, para te lamber a pele. E ver o Sol. A Lua e as refulgentes estrelas num abraço profundo. Então, tudo fará sentido. Amarramos o tempo ao chão e inauguramos uma tempestade passageira. E bailamos os dois ao ritmo da fortuna enfileirada numa  doce melopeia.

   Agora, não me digas mais nada. Estou ocupada a ouvir a chuva a sorrir.



(Fotografia de Hugo Coares Pinto)

26
Jul09

fechar [na gaiola da vida]

Paola

 

de Coucelo

 

 

A porta encerrou-se na intransigência da fechadura. Na simetria do recolhimento, a passagem imobilizou-se no pensar… no anseio de voar. De ser saída para passos de arestas arredondadas. Sem receio do frio que estava na rua…

 

Na ombreira deste sonhar, a porta depressa entendeu que os pardais não têm a chave do telhado… sendo pássaro na gaiola da casa

 

 

 

 

20
Jul09

saborear [na rampa do meu passado]

Paola

No lado de lá, há um vale que descansa no verde. Declives suaves abrem-se a trilhos de matos caminhantes. Do moinho atingido pelas mãos do esquecimento até aos campos de pão. Predominam manchas de arvoredo. Tão verde que o vento resguarda as tintas que se aprumam no temperamento da natureza. E só para disfarçar, Éolo entoa trauteios vistosos. Rebola-se nas flores. Empoleira-se nas pontas das árvores. Ri à gargalhada. Por vezes, é tanto! Uivos de lobos famintos. Berros de telhados apavorados. Brados de árvores agitadas. Apenas as flores dançam ondas de contentamento num ritmo exagerado. Os seus corpos modelam-se na técnica de enxotar o medo. E rodopiam. E também elas riem à gargalhada. No vale. As nuvens fogem. Apavoradas. As gaivotas grasnam o mar que perderam, ao mesmo tempo que as andorinhas trinfam negras incertezas sobre a primavera. Sem perceber a razão do vento ofegar assim, num acalorado dia de verão. De longe, chega a onomatopeia diluída dos cães. Os gatos arrepiam-se ao colo dos donos. Na esquina do outro lado.

 

Hoje, havia verde. Excessivamente muito. Frondoso. Fumegante. Uma leve brisa desenrugava uma ou outra folha ensonada. Espreguiçava as flores que se aplaudiam na encosta da colina. Até ao vale. Subi a rampa e perdi-me no contemplar. Enxotada pelo zumbido de uma abelha com asas de mel, tropecei nos sabores da minha infância. E voei para lá, montada nas tílias do tempo. Para comer amoras silvestres. Das silvas. No baldio da minha saudade. Passadas largas chegaram da flor ao fruto. Do verde ao vermelho. Negras. Tão negras! A cada dentada, a minha vontade desfazia-se na língua da minha memória. Esqueci o vale. Ignorei o vento. Comi sabores de antigamente. E lembrei-me de tudo. De mais.

 

As amoras, que hoje merendei, tinham um esmagado travo a doçura… na míngua do gosto da minha meninice. Nem me recordo se tinham paladar… mas lembro-me do sabor da ausência das mãos… do aroma espalhado pelas amoras das silvas… Sepultei, no chão fértil do vale, pedaços de folhas verdes que o vento afastou… na palidez da minha fome.

 

 

 

03
Jul09

esconder [na tona da vã calmaria]

Paola

Ericeira

O mar olha-me e sorri… e fala, fala… na repetição do seu cálido marulhar. Fundeio, no refúgio de sargaços escarlate, palavras à tona, frases que não flutuam. E ouço um grande ponto de incerteza no fundo da pontuação.

 

Em terra, os meus dedos são braços de polvo na faina das redes, enquanto no mar, está tudo tão sereno na película da superfície …

 

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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