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ponto de admiração

ponto de admiração

21
Abr09

arrefecer

Paola

navego num rio que não existe

 

 

 

Quando o meu rio me dava abraços escaldantes, marés de beijos quentes e espumas de mornas carícias... Quando o meu rio me amava na areia, enquanto o vento trinava cantilenas de amigo... eu não via que o azul da sua pele era mais azul que o azul que é azul... Tão quente!

 

Agora, que o meu rio navega longe do meu ver, o azul arrefeceu... e é, por isso, uma cor demasiado fria... Na temperatura do frio e do quente, o azul é a cor do chão do horizonte da minha pátria ... Tão quente!

 

 

 

19
Abr09

re-editar

Paola

o meu livro é da cor do azul-rio
 
 
Um dia, alguém me escreveu. Páginas e páginas de letras delineadas com emoção. Muitas ilustrações preparadas com mãos de sabedorias de bem-querer! Tantas paisagens em que eu me reinventava. Outras desenhadas só para mim. Predominava o azul do meu céu que vai do lado de cá até lá… E eu não sei em qual das margens o azul é mais estendido… o sol, esse brilha mais do lado de além… Onde os poemas conversavam pacatamente com a alegria da concertina… Onde a melancia se desventrava no deleite encarnado da abundância… Onde a batata era doce e se desfazia em cuidados ao calor do lume que crepitava na chaminé… e o café pululava na cafeteira de esmalte azul… A minha paisagem tem os sabores do lado de lá…
 
No sábado, reescrevi um capítulo do livro… de ruas e vielas. Aperfeiçoei algumas imagens já amareladas por tanto tempo sem ver… Unicamente eu as vi, porque só eu as posso ver. As que estão, não são as que eu desenhei… Ali mesmo, na praça pública, escrevi mais poemas… memorizei-os todos… para que os possa dizer de cor… ou não. Vou guardá-los no meu olhar…
 
Não! Não os vou parafrasear. Estou deslumbrada com as palavras que inventei... Oponho-me a dissecar poemas. Afasto a hipótese de humilhá-los com um esgravatar feito interrogatório de motivos, consequências e deduções… Não lhes quero engendrar vontades que já esqueci e que nem sei se desfrutei. Recuso intenções que ignoro, embora minhas, neste tempo que não é mais o outro… Se leio um poema, perco-me no sentir… e gosto. Quando não gosto viro a página… E neste livro comum, a que chamo vida minha, a poesia não quer leitor… até eu me confesso incompetente no meu analfabetismo funcional… Foi escrita sem motivo e não quer entendimento...
 
 
O livro, que me escreveu, pereceu às pegadas do tempo… e eu mais não sou do que um rascunho mal acabado… Regressei a casa, onde, na calada da noite, o vou re-editar... 
 
25
Jan09

percorrer

Paola

de Jorge Soares

  Setúbal, Convento de Jesus

 

 

 

 

Debruçada na janela que se esgaça em mim olho para o mar. Sem razão especial, apenas para ver o mar. E sempre que olho para o mar, é o rio que vejo a navegar. Serpenteia medos no percurso que o conduz, mas ousa olhar para trás. O rio corre na incapacidade de recuar e, decidido, confunde-se na vastidão do mar. O rio sabe que continua a ser rio. O oceano é que é o mar. Irmãos de sangue, devoram-se numa corrente contínua. No limite do abismo.
 
Olho e alegro-me por não o poder parar. Feliz por não o terem forçado a correr em linha recta. Porque não há rios iguais. De Sul para Norte. No lado de cá.
 
Depois, quando fecho a janela, faço carícias ao rio que vive longe de mim. Iço as velas e faço-me ao mar… pela rota da canela. No arroz que é doce.
 

Vou vendo e vou meditando,

Não bem no rio que passa

Mas só no que estou pensando,

Porque o bem dele é que faça

Eu não ver que vai passando.

 
                                                        Fernando Pessoa
 
Às vezes, quando penso no rio, uma lágrima desagua no mar...
 

 

 

15
Set08

segredar

Paola

de João Palmela (Arrábida, Setúbal)

 

Se eu pudesse, descobria um caminho só para mim. Um trilho para a ilha deserta que há ali. A ninguém diria o caminho. Depois, construiria um castelo para ouvir o mar. Era um segredo que de todos calaria, porque o silêncio é escasso por aqui. Apenas para mim e muito belo.

À sua volta estariam plantas, flores e árvores com ninhos de alegria. A ninguém diria. Acessos sinuosos, ruas labirínticas, carreiros muito estreitos, silêncios canoros bastantes para os amantes. E nós faríamos amor todas as manhãs. Como o mar e a areia. E o Sol. Vendava-te os olhos, enrolava-te na minha paixão, dava-te a mão... O caminho? Não to diria, não!

E os outros, se assim entendessem,  apregoariam a minha morte. O meu naufrágio. E eu, ávida e esfomeada, viveria a êxtase da  beleza. De uma terra que é minha. De uma serra que é mãe.

 

10
Jul08

sadina

Paola

 

   Setúbal é a minha cidade

 

Setúbal morfologicamente falando é um nome. Próprio. De pesca e de rio. De porto e de praias. Também de gaivotas. Feminino. Género serrano. Número sadino. Não se interessa por regras gramaticais que lhe subtraem a sua grandeza. Setúbal é um topónimo inscrito no mapa que nos delimita as fronteiras. Um mapa que nos tolhe os movimentos. Um mapa que nos diz onde começamos e acabamos. Eu comecei ali. Acabarei por aqui.

 

Um mapa que não que nos confina a língua que é do tamanho do mundo. Apesar da sardinha soar com dois rês… Palavras ditas nos versos de Bocage. Música cantada na voz de Luísa Todi. Uma serra amada e cantada por Sebastião da Gama. Poemas frescos e amenos, com rimas embrulhadas na areia da praia. Com os versos mesclados com a vegetação mediterrânica da Serra.

 

Setúbal é uma cidade. Enleia-se no rio e faz amor com ele. De madrugada. Ele beija-lhe os pés e diz que a ama. E o mundo pinta-se de azul. Ouvem-se êxtases aniladas. E há a serra. O verde exalta outra paixão antiga. Feitiço, evidentemente. Poligamia, também. E depois, se é permitida pela religião que praticam? É crime o amor, a harmonia? E a poesia, a cumplicidade? Os três numa orgia de sentidos, de cores e de emoções. De tantas surpresas. Um amor selvagem de corpos nus.

 

Nasci ali. No Convento de Jesus. E tenho saudade, mas não sei de quê. Uma nostalgia fragmentada por reminiscências difusas. Sumidas em tempos e espaços que não voltarei a ter. Que deixei. Perco-me em divagações e oiço claramente a concertina do meu avô.

 

E tenho saudades da escola que nunca mais vi...

 

 

O Sol já se escondeu...
Precisamente quando,
feliz,
eu desatei a cantar.
(Só por feliz eu cantei.)

Agora quero acabar,
que já me dói a garganta,
mas vou ainda cantando,
temendo
dar por mim de novo triste
assim que esteja calado.
(...Como se a minha Alegria
nascesse de eu ter cantado.)

 

 Sebastião da Gama, Serra-mãe, 2ªEd. (1957)

 

Fotografia de Olhares

 

20
Jun08

pelo alívio de tensões – as regras do jogo / parte III

Paola

  ou a velhice da vida


Eu sigo pelo passeio do lado direito. E o rapaz continua a pontapear a bola. Agride-a com carinho. Com os ténis cansados de tanto rematar. Goleia a equipa adversária. Ergue a taça. Ouve os aplausos e o bruaá da multidão que entoa cânticos de vitória. Marcou o golo do triunfo. Atira-se para o chão e chora. Lágrimas com gosto a êxito. Que é história. Que se faz narrativa ao serão. Ninguém o ouve, porque recolhem atestados de transportes. Desprovidos de tempo para o sono. Sem invenções para aprontar o jantar. Com desejo de dormir e, talvez, sonhar que o dia seguinte acordará domingo ou feriado.Tanto faz. Que bom que ao domingo não houvesse nada para fazer.

 

- O primeiro dia da semana, o domingo, é dia descanso…

- Descanso, não, pai! Irrompeu logo o rapaz. A Joana trabalha na loja no centro comercial. O fim-de-semana dela é a quarta e a quinta! Ela não tem domingo, pai!

- Pois…

 

Esperam uma semana que seja domingo. Vão à missa. Arquitectam um almoço com todos à mesa. Depois, escapam-se para tomar café no senhor António. E cavaqueiam até meio da tarde. Na memória guardam as novidades da rua. Segredinhos de vizinhança. Intensos e banais para que durem até ao domingo seguinte. É sempre assim aos domingos. Às vezes, ainda lhes sobra tempo para ir até ao centro comercial. O miúdo também vai. Só que contrariado. Preferia que lhe vissem o jeito para o futebol. Que o aplaudissem nas vitórias.

 

- Vais ver o meu jogo?

- Hoje é domingo. Vou descansar. Aliviar a fadiga.

- Vem!

- Vais jogar sozinho. Não tens equipa!

- Pois não…

 

Ao domingo de manhã costumam rir à gargalhada. Para enxotar os espíritos. O mau-olhado que a segunda-feira tem. À tarde, desenham projectos para concretizar na fila do autocarro. E não riem. Ainda estão estafados.

 

O garoto e a bola concretizam-se nas imagens repetidas na televisão. Com destaque a cada meia hora. Em horário nobre. Como se a nobreza se atormentasse com a publicidade. Têm jardins com plantas sempre verdes para guarnecer os jardins e espelhos de água. E palácios e palacetes ajoelhados na areia da praia com janelas a espreitar o mar. Os brasões não jogam à bola na praceta da rua de um bairro sem insígnias. Estranham o muro branco da casa das nespereiras. Apoiam-se no esqui completo (botas e bastões) e escorregam nos relvados cobertos com neve.

 

O Ti João tem uma bengala. Foi uma vizinha que lha deu. Há pessoas boas, comentava. Aquela tem mesmo ar de boa pessoa, indicava com o dedo e sorria. Quase que corava. Eu pressenti-lhe o rubor. E não se enganava. Corriam rumores que ele conseguia farejar gente boa à distância. Mesmo no lado de lá da rua. O homem amparava-se naquele pedaço de pau arqueado. Ainda se lhe percebia o brio de madeira nobre e as marcas de uma qualquer incrustação no punho. Provavelmente restos de uma espécie francesa. Com um cabo de prata. Sobras de êxodos clandestinos depois legalizados. Um generoso utensílio a fornecer apoio a quem precisa. Outras vezes artificiosas. Inúteis. Há homens que usam a bengala como sinal de distinção social. Uma bengala como sinal distintivo. Uma bengala que não transformava o Ti João num jovem moderno e airoso. Mas ele sonhava e imaginava que sim.

 

E jogam com as suas ilusões de criança. Um ainda é. O outro já foi.

 

O rapaz remata sozinho. Para um guarda-redes transparente. O Ti João confiava que teria consulta no dia seguinte. Desde que fosse cedo. Próximo da madrugada.

 

Os dois estão desacompanhados. E fantasiam. Inspiram audácias. Que se cumpririam no segundo dia da semana. Para alívio das suas tenções.

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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