Já gastámos as palavras pela rua, meu amor, e o que nos ficou não chega para afastar o frio de quatro paredes. Gastámos tudo menos o silêncio. Gastámos os olhos com o sal das lágrimas, gastámos as mãos à força de as apertarmos, gastámos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis. [...] Não temos já nada para dar. Dentro de ti não há nada que me peça água. O passado é inútil como um trapo. E já te disse: as palavras estão gastas. Adeus.
Ensina-me a descobrir as cores e vamos ser caleidoscópio. Alterar o padrão, transformar a sombra. Sejamos horizonte. Céu e terra. E sintetizemos os nossos corpos. Tudo numa cor. Única. Suave e essencial. Vem! Toma a minha mão. Faz desenhos com elas. Pinta-me e descobre-me no calor do deserto. Ao sol. Vem! E percebe-me na nudez das minhas palavras. Abrevia as aparências. Mas vem pintado de fresco. Porque não sei de ti.
Gosto de ouvir rádio. Andar por lá, adormecer no bulício das vozes, enrolar-me na cadência da música e desadormecer ao colo da canção seguinte. E dou por mim a pensar naquela canção que ouvia sem me atrever a contar as vezes. Que não ousava contar a ninguém, com medo que me furtassem o instante. O tempo passou e agora não escuto as mesmas canções. Mergulho nas vozes, gosto das músicas e enrolo-me exatamente com a mesma desordem com que antes me embalava.
Passa uma canção que escutava com o volume incendiado… quase não a reconheço. Desejo que acabe… E dou por mim a pensar a razão do meu sentir. A canção permanece inalterável…
Não fui eu que mudei… mas é impossível ouvir a mesma canção sem lhe mudar o sabor. Como o beijo que trocámos à tardinha… Como a cor deste mar de ritmos cadenciados… Como o bater inquieto das nossas bocas que numa tarde se calaram com uma vontade doida de chorar.
Sinto saudades de uma época que que já não tenho. De vez em quando, lembro-me. Sem saber se são memórias que trepam pelo tempo. Ou ofertas de episódios que se perderam na efemeridade dos dias. Se são primaveris momentos de saudade. Ou meras circunstâncias que descem em meu auxílio. Não sei. Mas juro que os tive. Que os comi com o mesmo deleite com que me enrolo em mim. Garanto que foram meus. Não me poderia lembrar do que não tive, penso num franco e generoso sorriso que chega até lá.
Naquele tempo, sobravam meias rotas, passajadas e gastas. Outras, escorriam malhas. Danos irreparáveis. Era com as meias que sobravam que a minha mãe me enchia de alegres brincadeiras. Das suas mãos, saíam, normalmente ao serão, bonecas maravilhosas. Depois vestia-as. Penteava-as e eu brincava com elas num orgulho desmedido. As bonecas da minha infância foram feitas de trapos. Tiras de amor e linhas de ternura.
Um dia, não me lembro exatamente qual, surgiu lá em casa uma boneca nova. Orgulhosa. Com um olhar distinto. Lembro-me do exagero da sua boca escarlate. Recordo a inquietação com que recebi o presente. Corri para a rua, gritei, saltei. Tenho uma vaga ideia dessas hipérboles infantis. Passado o instante, isolei-me com o meu recente brinquedo, uma boneca que não era de trapos.
Debaixo da figueira, aquela que generosamente dava figos moscatéis, defini o território. Uma casa desenhada na terra. O quarto e a cama. A boneca adormeceu. E eu olhava-o com um profundo instinto maternal. Embalava-a e cantava para ela cantigas de adormecer. Não tenho a noção do tempo que estive assim. Nem sequer sei se lhe doei um nome. Tenho pena de não a poder tratar pelo nome… Havia a boca! Tão vermelha! Era a boca que dificultava a nossa relação. Dava-lhe um ar de boneca crescida que não me agradava.
Subitamente, começou a chover. Uma chuva que tombava numa verticalidade severa e assustadora. Peguei nela ao colo e corri para casa. Foi um trajeto de ziguezagues que fiz em pouco mais de cinco minutos. Chovia intensamente. Pancadas torrenciais que provocavam medos na minha cabeça e na dela. E eu corria. Entrei em casa escorrendo gotas de desalento. Gotas de brincadeiras atrapalhadas. E lamentei a sorte.
A boneca estava desfeita. As suas feições tinham-se alterado sem que eu percebesse. Recordo um buraco enorme na face. E chorei a desgraça. Ela estava doente, moribunda, acabada, semimorta.
Não tiveste cuidado. As bonecas de papelão não podem apanhar chuva. Fiquei agastada, humilhada com a informação. E eu sabia lá que o raio da boneca era de papelão? Papel ou qualquer material do mesmo género? E o banho? Eu já lhe tinha dito que tomaria banho comigo e ela concordara…
É por tudo isto que, ainda hoje, prefiro as bonecas de trapos que a minha mãe fazia para mim. Conhecia-as bem. Nunca me passou pela cabeça dar-lhes banho, afianço. É por causa delas que tenho saudades das mãos da minha mãe. Mais resistentes às tempestades. E do jeito que ela tinha para lhes compor o olhar...
Quando ando por aí, não paro. Vou sem rumo. Subo montes. Depois desço. Às vezes volto para trás. É do cimo que espreito o rio. Ato o tempo ao chão e corro ao ritmo das letras que se desenham numa serena e doce melodia. Recito os segundos. Respiro as marés. E perco-me no afago das mãos.
Laço a lua e os lugares. A leitura e o luar. Laçadora de laços, laço as lágrimas, laço o olhar. E com laços labuto. Com laços limpo a lama. Com laços abraço as luzes. Na descida me completo. Quando ligo os lagos e as lendas. As mãos e as rendas.
Subo os montes para ver os novelos de linhas e os dedos. O sorriso que chega pela manhã com a toalha de linho ou naperon. Eram tantas as rendas! Os tamanhos e os nós.
O dia acordou enrolado num nevoeiro cerrado. Fazia frio. Não se vislumbrava o sol, apenas um fecundo pressentimento permitia supor que chegaria mais tarde. E não lhe apetecia. O sol chegava sempre tarde, pensava, enquanto enterrava o rosto na almofada. Por vezes nem vinha. Outras vezes, eram reflexos amuados que desciam lentamente pela manhã. Eram quase nove horas. Tinha frio. No quarto caía uma quietude perturbada. Que permitia ver formas indistintas na imperfeição daquela indigente luz. Jacinta há muito que acordara. E percebia vozes. Nítidos os rostos. Corpos que se despiam na sombra do nevoeiro.
Aos pés da cama, uma banqueta magnificamente arrumada. Lacada de um nobre e preguiçoso branco, alindava-se num vermelho acetinado como o canto de paixão. Sobre o banco pé de cama, um robe curto. De seda pura com mangas largas, estilo raglã. Um luxo suave e doce que se prolongava na maciez do estampado. Debaixo do banco, o gato. A fidelidade felina ronronava a sua presença. Que estava ali, que gostava dela. Jacinta voltou-se e enleou-se no tempo, puxou o lençol. Agarrou o dia e ficou por lá. Ela sabia que Beatriz chegaria por volta do almoço. Na noite anterior, tinham acordado almoçar juntas para prosseguir as frases inacabadas. As incertezas e os medos. As fotografias que partilharam ao jantar. Era cedo. Muito cedo. Jacinta sabia que o gato se aguentaria quieto durante o tempo em que ela estivesse deitada. Ele não compreendia que a dona viajava. E caminhava para trás.
Quando tinha sede, refrescava-se alegremente na água que atravessava a pele daquela paixão. Mar teu. Rio nosso. E tinha sede os dias todos. De pisar a areia. De rebolar na ternura das vozes que entardeciam na traineira. Da correria do mel. E de ir à fonte. Dos cântaros empoleirados na cabeça das mulheres. Da alegria do canto. Das quadras de rimas naturais. Bebia. E embriagava-se numa bebedeira consentida com copos de poemas. Do lado de lá, não era preciso mais nada. Tudo chegava. No sublime encanto das oportunidades repetidas, ouvia tranquilamente o silêncio do azul. E voava ao ritmo do bater das asas das cegonhas que corriam para os ninhos elevados na chaminé da escola. Imaginava-se um pássaro livre que bebia silêncios.
Jacinta sentia-se refém do nevoeiro e do mar. E daquele beijo de despedida. Num instante em que o que mais queria era sol. Não podia. O Instituto de Meteorologia, antevira nevoeiro intenso que se iria dissipar ao longo da tarde. No dia seguinte, o Sul continuaria com neblina intensa.
Numa descida acelerada, todos as gaivotas correram para o mar. Numa histeria coletiva, num bando improvisado estenderam-se à beira-mar. E apregoaram o feito com gritos cansados. E tornaram com os mesmos movimentos nas asas. E queixaram-se de não ter tido tempo para brincar.
- Bom dia, princesa! Ainda de robe?
- Visto-me num instante. Espera um pouco…
- Jacinta?
- Hum?
- Está bem…
No tempo das papoulas vermelhas, ela não se atreve a procurar o mar, pensou Beatriz. E sentou-se.
- Teimosa, como é, não sei… De certeza que leva o rio…Ou o tempo. As asas e o azul.
Nos dias cinzentos que correm enfraquecidos, na dor translúcida que me trespassa, na indecisão fina que me afoga, na esperança caída no chão de terra batida, queria amansar a dor. Remover a incerteza e reavivar a cor do sol. Colorir os dias, a lua e a noite. Disputar o brilho das estrelas e rir com elas. Queria ser alma, ser gente e velejar até lá. Reaver a casa grande pendurada na areia com janelas prenhes de luz. E as riscas azuis que se rebolavam no calor branco que cobria as paredes. Queria os mistérios que permanecem espalhados na duna. As toadas dos passos. O restolho das vozes. Queria os ninhos de sonhos que vogam pelo azul do rio. As marés, as ondas e o bote. O aroma da canela naufragado nestes dias frios e cinzentos.
Se agora fosse natal, a minha escuridão desfazia-se prolongadamente num abraço profundo. Das janelas destes dias cansados e frios, trepava até ao céu. Fundeava o tempo e privava-o das estrelas que ele me roubou. No Natal.
Eu nunca te pedi facilidades. Nos teus olhos dispus as imagens que moravam no meu corpo. Às tuas mãos atei amarras de fibras trançadas de sol.
Na tua mão direita, lembras-te, erguiam-se cordas libertas da admiração. E o rio dançava musicatas azuis. Enquanto nos teus olhos passavam alegres composições verdes. A gente cantarolava ao som do violino que entrelaçava acordes perfeitos. Numa tensão afinada.
Agora eu sei que o tempo enferruja o equilíbrio. E que os nós se agarram às cordas. E obrigam a habilidades de coordenação rítmica dos dedos. Cadenciada e com intervalos regulares.
Mas eu não sei como se desatam os nós. Nem tocar sem que umbeijose solte num sopro de sonoridades irrepreensíveis.
fui até lá só para escutar o mar. e andar. foi uma viagem pequena pela margem dos abraços ao colo da maresia. havia uma delicada neblina que me aguentava de pé. olhos nos olhos com o vento que chegara antes de mim. as pessoas contavam vidas que eu não entendia. às vezes gritavam e eu não as ouvia. duas palavras roladas na areia. uma estava a mais. calámo-nos encharcados de azul. e lá do fundo vinha um canto doce. uma cantiga morna. tão quente.
fui até lá só para sentir o perfume que sobrou da pele daquela tarde. e vi que houve um tempo em que me escondia nos teus dedos não fosse a areia querer.
fui até lá para ver o mar. o barco já não estava à minha espera. apenas o mar atirava satisfeitos sorrisos indiferente a quem chegava. ou partia. e as ondas navegavam sozinhas.
fui até lá para me lembrar que roubavas o mar só para mim. no verão.
Senhora… senhora… senhora… está bem? Nunca estive melhor, minha amiga. Respondeu coçando os olhos com a emoção que descansava serenamente. Na cama. O Sol entrava receoso pela janela. Que se escancarava para lá dos montes. Cautelosamente para não a aborrecer. No quarto generosamente amplo. De espaços livres e frescos. Viçosos como os sonhos que lhe revestiam os ombros. Voluptuosos. Boleados. Tenros. Como as folhas das árvores que porfiavam numa mansa agitação. A quietude erguia-se no brio da antiguidade. Jacinta exibia o requinte do seu olhar por todos os cantos do apartamento. O quarto era o que pensava mais seu. Dela. Inteiro. Explicava tudo na saga das gerações. Apenas acatava a formalidade. Saboreava. Queria. Mantinha a cama que já adormecera avó. A mãe. E ela que gemia num semi-coma de susto. O resto alimentava-se da luz que amolecia pacatamente no chão. E do vermelho correntio naquele corpo ainda a dormir o sobressalto. Duas janelas fartas com cortinados encolhidos. Por onde testemunhava aviões que se encaracolam em acrobacias arriscadas. Asas depenadas no arrojo do gesto. Fumos inversos. Três tapetes vermelhos. E muitas almofadas de alegria. Beatriz jogava silenciosamente às cartas. Paciências enroladas no monitor. Amizade emudecida nas derrotas desatentas. Paredes brancas. Escreviam-se em folhas de estuque pintado na plenitude da cor. Na nobreza da sua função. Sem perturbar… no emaranhado de palavras que contorciam silêncios pelas paredes. Apenas a porta se demorava na resignação da espera. Em movimentos entrelaçados. Com um enorme sorriso aberto. Na curiosidade de saber enrodilhado o lençol que se alongava na cama. Beatriz olhava. Ao mesmo tempo que se enovelava no silêncio de rendas e sonhos.
Ergueu-se numa gentileza sonolenta. Bela. Como se fosse manhã. E não era. Vamos. E foram. Jantaram na companhia da Lua. Na excentricidade do luar. Ao baile. Beatriz mordeu o entulho do espanto. Chegaram, já a música dava solavancos de ritmos esbatidos nos sorrisos bailarinos. Beatriz sorriu. E rumorejou que sim.
No baile, desapertou danças complexas. Só para espantar a audiência afilada nas cadeiras enegrecidas pelo bolor do tempo. Pela corrosão do presente. Pela incerteza do futuro. Por não saberem dançar ritmos de todos os tempos. Pela enorme incapacidade de discernir músicas dançáveis. Na sua cabeça, bailavam passos desencontrados porque pisados por pés intransigentes. Fragmentos das suas certezas rodopiavam perdidamente. Ao ritmo de melodias que escutava no carro. Com ele. E dançava. Dançava. No limite da vertigem. No auge da carnalidade. O seu corpo um piano moldado aos dedos do tocador. Numa escala de dó. Teclas soltas. Forçava os dedos. Deslumbrada no sol. Nos passos em construção. Assumidamente em si. Num gerador aleatório de abdicação. E o sol rodopiava raios com sabor a amor.E ela engolia. Bebia.
Depois cansou-se. Arrumou a meia-cauda do piano. Enfraqueceu a luz. Rebolou-se para o outro lado. Sem gemidos. Só adormeceu. Se o gato tocasse piano, falaria francês. Ballet, quem sabe. Teria uma língua apaixonada. Garras gastas à beira do rio. Beatriz durava no jogo de cartas… num descanso guardião.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]