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ponto de admiração

ponto de admiração

07
Mar09

amarelar

Paola
 um ano, criei um blogue... dizia eu que para "armazenar" coisas... um arquivo... Há um ano, mostrei o blogue ... em segredo e corava pela ousadia... Hoje, para ti, vai um beijo abraçado, GMV... 
 
Hoje, para todos os que aqui têm chegado, vai a minha gratidão... Hoje, reescrevo o mesmo post... com mais emoção nas palavras e muito embargo na voz. No silêncio de mim ...
 
 
 
Choupana onde se ri vale mais que palácio onde se chora...
 
 
 
Sou um canário e o meu nome é Mário. Belo, amarelo, dois anos de idade. A minha melhor qualidade? Cantor, naturalmente! Vim de longe, de muito longe... Viagens de família, linhagens a cumprir, rituais repetidos. Das Ilhas Canárias, conflito adiado na História assinalado... Miraculosa plumagem! De amarelo pintado, a cantar desenhado... ou branco ou mesclado, mas salve-se a tradição que me confunde com o Sol. Sempre fui fiel às tradições. Do Natal, do Mar, do Falar, do Cantar a dor no Fado sofrida. E então, se a alpista é miragem de ave canora engaiolada? Gaiola? Belo e encarcerado! Gaiola? Cantor amordaçado!Tristes aqueles que não entendem a liberdade da gente! Destino fadado - fada má certamente - para mim. Assim: pássaro , belo, prisioneiro, aedo , trovador... Tanta falta de rigor. As asas por voar, as penas - que não são pequenas - a crescer, o canto a esmorecer... Triste sorte a minha! Determinada e fechada junto à janela da cozinha. Espaçosa, arejada, escura nas madeiras. Tudo demarcado e marcado pelo gosto. Castanha , florida, ensolarada - ai, Sol que não me reconheces - comestível, perfumada, cozinha... Ao fundo a janela. Grande, envidraçada, lindas cortinas de renda ... brancas e com muitos folhos. Cobres aos molhos. No fogão e no balcão. Reluzentes - tão areados, coitados! Ampla, ventilada, dourada, uma enorme assoalhada, eis a minha gaiola. Suspensa num suporte também dourado. Requinte engalanado, maldade abismal de quem crê fazer-me bem quando eu me sinto tão mal. Liberdade paradoxal, perplexidade num pássaro alado sem asas para voar... Poleiros a reluzir, baloiço - que luxo - de embalar e sonhar com as asas que não tenho, porém invento. Passatempo para ludibriar o tempo... Tudo perfeito. A cozinha, a gaiola e eu que caibo nela, à janela. O que não entendo mesmo é se me encontro preso - definitivamente ou se me fizeram refém não sei de quem. São, evidentemente, situações diferentes de pronunciar cativeiro. Preferiria saber a ter que adivinhar. Só que não sei qual escolheria. Que importa quando não me permitem a escolha e se não tenho asas para voar? Conformo-me e pronto! Sou pássaro amputado em arames castrado! Enclausurado? Paciência, rendo-me à evidência de príncipe encantado no palácio algemado. Inocente mentira de quem só pensa no caminho para lá... Íngreme, penoso ? Sei lá, se a possibilidade de experimentar não há? Somente uma vez... Talvez não vá gostar e possa voltar... Eu volto, prometo! Insensíveis, cegos na ganância de me prenderem ali... a cantar.... quando eu estou a chorar lágrimas reprimidas, dores sentidas, liberdade aprazada sem dia marcado. Raptado ? Alternativa ao nada que é já tudo, tanto na libertação almejada. Refém sem data no tempo que não passa, mas desgasta. Bastam-me as culpas que recuso, o perdão que não peço, a alma que não vendo. Antes pássaro amarelo num livro decalcado. Resta-me a janela que é a ponte entre o que sou e o que desejo e não vejo, apenas sonho! Lá fora o vento agride o bom tempo que não há. A chuva repete-se na ladainha costumeira. Ping ... ping ... gota a gota. Um relâmpago de quando em vez ilumina a noite escura que não me permite sonhar... Um trovão que de imediato me vem acordar. Vejo ninhos e árvores e sei segredos que não desvendo porque é castigo estar aqui. Imagino-me pássaro a voar, a voar e apetece-me cantar a minha loucura... D. Quixote, pois então. Mas não, ouvi um trovão. Que vozeirão a vociferar a razão de eu estar aqui. Ainda bem que não o percebi. Cumpre-se a Torre de Babel. Aquilo não são modos de falar com ninguém. Apenas me assustei, contudo não gritei, juro! Apenas acordei... A minha vida é um temor permanente. Receio a fuga que idealizo e não concretizo. Temo a prisão que me nega a evasão que desejo. Estremeço quando a porta se fecha a adiar, a adiar... Arrepio-me com a possibilidade de a deixarem escancarada... Fecham-na sempre. Vida madrasta . A Gata Borralheira foi tão feliz! Oiço o vento a entoar melodias de embalar, cantigas de amigo... Parto com ele à conquista do mundo que me foge, grito a fantasia que há em mim e canto a magia da meia-noite. A fada perdeu a varinha de condão! Não tem perdão. Não! Não! Lá isso é que não... Da janela eu tenho o mar. Vejo pontes e barcos e homens, muitos homens. Oiço vozes escondidas e perdidas no movimento contínuo das marés. Encontro sonhos adiados nos olhos dos mareantes que se fundam no cais. Sem poesia, sem paixão, com adamastores na imaginação. Sucumbem ao peso da viagem que nem começam. Percebo ondas que vêm e vão magoadas de não continuar em movimentos inquietantes, irrequietos, ondulantes, sedutores, mas tão redutores. Não deslumbram as varinas atrevidas , bamboleantes e cantantes. Livre circulação, não! Marionetas, controladas à distância pelo tempo a dizer que não. Os homens descontroladas não entendem que são prisioneiros da vida, amarrados aos sonhos que não levam para o mar. Livres e tão presos, os pobres... Não sabem que o mar é decepção de quem quer partir e fica ali. É a fantasia, a razão, o espectáculo ,  deixa de quem só sabe ficar... E eu queria tanto ter um barco, galgar distâncias, cumprir a História: navegar, navegar. Ir para além da Taprobana. Em desejos e mitos concretizados, mais do que poderia a dor das minhas penas e, entre sonhos meus, desenhar a minha saída para o mar, Utopia decrépita em gaiola doirada. Barco fundeado ao largo, lágrimas reprimidas na viagem por acontecer. Miserável, para que queres asas se não sabes voar? No outro lado há frio e vento e chuva e um calafrio percorre-me o corpo ... sinto-o ... inunda-me a alma. Vem trovão! Acorda-me... Lá fora, as árvores, trémulas e amedrontadas, agitam-se. Quem diria o medo delas! Estouvadas que não entendem que é somente o vento a correr por ali. Cavaleiro andante a cavalgar , a saber, a conhecer. Invejo o vento que é livre para voar e pensar. Amo o vento que não se deixa amordaçar. Há vendaval de novas no jornal ! É o vento a sustentar o pensamento. Um rapazito corre. Ele quer percorrer o tempo, que se lhe escapa, para o domar. Ignora que a ventania não se dobra à vontade da gente. Pressinto-o triste.  Tão triste...A sorte que nós temos ! Tu petiz infeliz correndo pela rua, apesar do vento... Eu canário perdulário em gaiola doirada... cara envergonhada a espreitar à janela. Olhos sequiosos de ver, boca faminta de não ter,, mãos calejadas de tanto pedir, roupa gasta a desistir... Tens, meu amigo. a liberdade de fugir! Eu é que não! Que vês? Não te iludas. Aparência ilustrada, ave desasada ... Espera! Fica mais um pouco Estou rouco de cantar para ti... Eu canto! Não está mais ali. Encontro desarrumado, mas tão perfumado. Foi uma rosa que eu vi: bela, pequenina, efémera. Eu queria contar-te um segredo. Nem o meu degredo repetido, nem arvoredo escondido. Tão somente um segredo. Pequenino! Que fosse nosso, meu e teu. Olhos nos olhos bastava para nos entendermos... tu não olhaste para mim. Divina cumplicidade na amizade a haver. Um segredo... Amanhã é Natal! Narcotizante inebriante de tanta gente, simplesmente porque é Natal. Amarguradas e desajustadas as pessoas circulam descrentes das luzes reluzentes. Formigueiro domingueiro em dia de semana. Tão apressadas que não dão por nada. Nem reparam que estás ali e eu aqui. Compram, compram sem razão. Predestinadas... coitadas! É Natal... elas estão distraídas, tu não. Cumprem o calendário, tu inventas o teu fadário. Elas têm, tu és, eu estou. Dá, não compres que corrompes o amor que contigo nasceu. Amanhã é Natal... Porquê se amanhã é segunda-feira? Vamos fazer Natal? Para quê se não aprendeste a brincar. Inutilidade tamanha! Um brinquedo de infância para quem não é um criança... e eu nem vi o mar. Anacronia com sentido proibido... Vem! Eu ensino-te a brincar e  a rir e a chorar e a sonhar e a amar e a perdoar e a cantar... Tudo, excepto comprar na véspera de amar.  Um dia será Natal. Numa fuga planeada. Definitivamente! Aqui, aí, sempre! 
 
- Bom dia, Mário. Dormiste bem?
-Tão lindo o nosso canário...
- A gaiola está bem ali?
- Cuidado com a porta!
- Fecha a janela, não vá ele fugir...
 
 Janela trancada. Cortinas cerradas  E eu só oiço o mar...
 
[fotografia da internet]
 
23
Set08

matar

Paola

de Paola (Gincho, Cascais)

 

não é preciso

 

Mato moscas. As que penetram sem autorização. E mato mosquitos. Todinhos, que são bicho ruim. E mato a sede. Sempre que posso. Normalmente com água que é coisa boa. Mesmo que a inodora, insípida e incolor seja uma miragem. Mas gosto tanto das garrafinhas com tampas multicores. Comprei-as por reconhecer que até ficam bem no frigorífico. Amarelas e com formas. E falam comigo. Dizem… É segredo. Não explico, não vá alguém querer também. E mato os aranhiços. Só que fico cheia de hesitações. Mato? Não mato? Mato! Mas dizem que é dinheiro… E tanta falta que ele me faz. Em vez do pobre aranhão, devia era matar o bicho. O outro. O da manhã. Não tenho tempo!! O tempo? Todos os dias. E por mim matava-o todo. Talvez assim vivesse mais uns dias. Só que o danado não deixa. E foge. Voa. Não que se enlate em fluidos que facultam asas. Pelo que sei, nem bebe. Ou bebe? Se calhar eu é que não sei. E enfia-se nos relógios que tenho. É por estas, e por outras evidentemente, que deixei de dar corda ao relógio da sala. Calculo que o matei. Paciência! Não era vida para mim. Sempre a badalar. Porque era hora. Por fim metade só. Azucrinava-me os ouvidos com o quarto dela. Agora que o calei, sinto saudade. Pobrezinho! Aquilo não se faz. Só o matei, nada mais. E mato a fome, com certeza. E quem não mata? Antes ela do que eu. Todos os dias. Não tenho é tempo. Devo dar corda ao relógio? Não dou! Não preciso dele para comer. Já me basta a barriga a dar horas. Ufa! Matar, matar… Só mato a saudade. Desato acorrer e vou lá. Pronto! Já está. O pior mesmo é os que já morreram . Lembro-me deles. Afago-os com minha memória e peço-lhes que não esperem por mim. Às vezes choro. Outras mato-me a chorar. E lá vou eu trabalhar. Outra morte certa. Há quem se mate a actuar. Eu só fico moribunda. Que sensata que eu sou! Mentira! Há dias que morro, só que ressuscito. Ele não ressuscitou? Então eu também posso. Atenção, que também já morri de amor. Mas isso foi muito bom. Agora só gosto. Muito! Deles. E é admirável. E mato-me a rir. Só quando a deliberação esguicha cá de dentro. De fora não dá. Choro e tudo. Atitude sem sentido, aquilo nem é um funeral. Juro que não estrangulei o casamento. Ele é que morreu. Estava lá e vi. Outro dia, torturei não sei quantos, pedaços de mim. Irritei-me. Guerra de eus. Empertigados e ruins. Todos com opinião. A querer decisão. Já chega o outro, que se desdisse em pessoa. Ele foi capaz. Matar o desgraçado do vício é premente. Só que há uns que não mato. Nem que morra por causa deles. Outros, deixo-os definhar. Não me importo. Nunca matei uma galinha. Coitadinha, degoladinha! E mais não matei. Ou já me esqueci? Ou não quero dizer? Não me lembro.

 

Com tanta coisa para matar, há que esganar o cão do vizinho? Ou o vizinho. Ou a vida. Não concordo! Não! Mas não é por isso que me vou matar. Pode-se sempre dar cabo do stress. É palavra estranha e não deita pinga de sangue!

 

07
Ago08

desatinar

Paola

 e quando a fuga não resulta?

 

Correr. Fugir. Apressar o passo. Fugir. E de nada querer saber. Fugir. Quem ficar que fique. Não me afecta. Ou então que corra também. Mas o trajecto é uma encruzilhada. Os quatros caminhos desapertam-se sob os meus pés. Obstinados. Um para cada lado e eu sem saber para onde ir. Porém, quero. E atordoado com o meu desejo desenfreado maldizem comigo. Segue em frente. Não sou capaz… Continua. Agora vira à esquerda. Não é por aí. Força. Tu és capaz. Vira agora à direita. Nem penses. Não quero, já disse. Então decide-te! Se eu pudesse. Contorna a rotunda. Para quê? A circular ando eu e não saio daqui. E eles também. Que nunca estão quietos. Nem tu! Mas eu quero abalar. Olha a rotunda. Contorna-a! Outra vez!? Uma recta, não há? Um caminho amplo e arejado. Aberto. Com luz. Sem curvas por causa dos acidentes... Quero andar, andar até alcançar o horizonte. Nunca ninguém agarrou o Sol, mas o horizonte senhores! Anda-se devagarinho para não tropeçar. E os sonhos estão mesmo ali. Só assim acredito que a estrada tenha fim. Eu quero errar por aí. Porque aqui já não me deixam. E os carros gritam estupidamente descontentamentos que a vida lhes dá. Na encruzilhada dos quatro caminhos. Cruzes canhoto! E eu não sou supersticiosa. Não fujas à regra. Elas existem também para ti. E há circulares. Vai em frente. Desce as escadas. Mais uma sugestão desatinada. Meu Deus! Eu tenho vertigens. Eu ajudo… Tu és um traidor. Não confio em ti. Desiludiste-me. Queres que eu caia? Olha que eu vou… Eu sou capaz. Eu desço, mas depois subo e volto para trás.

 

fotografia de Paola

06
Jul08

marés de saudade

Paola

o mar está cheio de saudades

 

Porque o mar é azul. Imenso. Luminoso. É guerra e paz. Partida e chegada. Eu tenho a cabeça cheia de mar. E muito azul. Viagens que fiz mais as que inventei. O mar tem barcos. E barquinhos de papel. De jornal com notícias de naufrágios. De lustro com muitas cores brilhantes. Aprendi na escola. Nunca enjoei. Não tem apartamentos rurísticos. O meu mar diz-se em marés de saudade. De memórias que se cumpriram num espectáculo sempre igual e sempre renovado: o Mar. De amar! De mar ao luar. Com Léo Ferré...

05
Jul08

pela mãe

Paola

 

g  mãe é mãe e tive uma também

 

Ciclicamente o dia de hoje nasceu sábado. Poderia chamar-se outra coisa qualquer. Nome próprio de artista de telenovela. Apelido de jogador de futebol. Alcunha de estrela daquele filme que provocou lágrimas à mãe e arrepios bem administrados ao pai. Amor? Sim… Quando tivermos a nossa criancinha… Sim? Podemos dar-lhe o nome dele? Não sei, ainda é cedo para pensarmos nisso. Vá lá, amor, deixa… E ali, ele abdicou do nome do seu avô.

 

Sábado. O sexto dia da semana é sábado. Pelo trabalho, pelo repouso. Gosto particularmente do lazer. Os romanos dedicaram-no a Saturno, o deus da agricultura. E celebravam o descanso após a boa colheita. Também eu louvo o arroz-doce da dona Perpétua. Que tem dias. Como eu. Hoje, particularmente doce e com pouca canela. Já se amealha a especiaria?

 

O café. Inevitável. Mesmo que só um ou dois. O coração já não autoriza desregramentos. Controla as nossas vontades. E nós cedemos. Atento, ele alerta! Cuidado! Mais não. Um coração ardente. E lá de dentro sente-se uma ferida que não dói. Mas é um fogo que arde sem se ver. Abespinha. Mói. Apoquenta.

 

Nada que estorvasse as nossa viagens. De palavras. De vocábulos com todos os sabores. Açucarado. Azedado. Arreliado. Apimentado. Picante. Agridoce. Venenoso, também. Temos direito. Porque é sábado.

 

Ao sábado matam-se saudades acumuladas. Fomos lá. Eu gostei de ter ido. Por tudo, mas porque aprendi. É fantástico aprender sempre. Ainda por cima, quando se trata de uma assunto que há muito nos persegue. As respostas não se dão. A gente não sabe e quer saber. A Internet não esclarece. Os livros não sabem tudo. Os adultos não explicam. E hoje, porque é sábado, obtive, finalmente, a resposta. Da boca de uma criança. Fonte mais que verdadeira. Agora já posso dormir tranquila.

 

- O que é a mamã? Perguntei.

- A mamã é a mãe!

 

Entendi. É mãe. Mãe. Não é mamã, mas mãe. Mãe! Com um i no fim e muito prolongado. É mesmo mãiiiiiiiiiiiiiiiiii. Claro que é!

27
Jun08

cantinhos

Paola

  brincadeiras de infância

 

A minha mãe mandava-me todos os dias para a escola. Independentemente da minha vontade. Para além dos desaforos atmosféricos. A minha mãe queria que eu aprendesse a ser gente. E, todos os dias, eu abalava de casa com uma mala determinada a crescer. E a aprender. No regresso contava-lhe coisas que ela não sabia. Encantava-se. E aprendia também. A mala nunca voltava vazia. Trazia brio e aspiração a ser alguém. Apesar do cartão que lhe construía o corpo. E do enorme fecho ferrugento. Cabia lá tudo. Sonhos, fantasias, brincadeiras, livros, imaginação, lápis. A caneta estava na escola. Um aparo que se molhava no tinteiro estrategicamente enfiado na carteira. Ao centro. Um cabo de pau. Um aparo de aço. A incompetência vinha ao de cima. Corava-me o rosto. Estorvava-me os movimentos. As marcas ficaram-me nos dedos. E nas mãos. Embora se esquivassem às reguadas correctoras. Outras sim, eu lá me ia livrando. Era interdito não ter jeito.

 

- Atenção, meninas! Isto é muito importante. Antes de molharem a caneta no tinteiro, com cuidado, para não se magoarem, metam o aparo na boca, para o molharem com saliva.

 

- Na boca?? – Interrogações silenciosas. O poder não era questionado. Obedecido, apenas.

 

- Se o aparo não for molhado com saliva, da primeira vez que se utiliza a caneta, a tinta não se prende ao aparo e suja as folhas do caderno.

 

- Todas têm as folhas de mata-borrão?

 

O mata-borrão impedia a imundície enquanto se escrevia. Mas não nos fazia melhorar a caligrafia. Nem a ortografia. Deve ser por isso que prefiro o lápis. Uma borracha chega. O mata-borrão é memória antiga. A preto e branco, apesar de me sugerir uma cor alaranjada. Escolhos na vida de criança a aprender a ser gente. Muitas vezes tragédia escrita em papel de linhas com dobra do lado direito. Outras tantas comédias inventadas à pressa para que não fossem descobertas. Mais umas que se faziam arte. Os borrões de tinta negra ganhavam asas como as borboletas. Pétalas como as flores. Sorrisos como as pessoas. Mas só às vezes…

E depois vinha o intervalo. Admirável momento delineado sem aparo. Antes com giz. Pedacitos. Sobras subtraídas ao quadro preto que me obrigava a saber dividir. O recreio tinha o jogo dos quatro-cantinhos. Um terreno livre de obstáculos. E a escola estava mesmo ali. Cinco participantes. E mais cinco. Outra vez mais cinco. Também sabíamos multiplicar e somar e dividir brincadeiras. Dava para todas.

No chão marcava-se os círculos em forma de quadrado. Quatro dos participantes ocupavam os círculos. A outra ficava no meio. E a do centro inquiria:

 

- Dás me o teu cantinho?

 

- Vai àquele vizinho. Responde, pouco disposta a ceder o lugar. Regras do jogo.

 

A do meio ia ao vizinho. As outras trocavam de lugar. Tudo num instantinho. Qualquer distracção possibilitava que a do centro ocupasse um dos cantinhos. Se o conquistasse, as posições invertiam-se. A do cantinho ia para o meio. Nenhuma se lembrava do aparo de metal e do tinteiro branco que ficara na carteira. Nem olhava para as mãos deslustradas pela tinta. Simplesmente corriam de um canto para o outro. Jubilosas. Tagarelas.

 

- Correu bem? Aprendeste coisas novas?

- Sim! O jogo dos quatro-cantinhos.

 

E lá expliquei. A técnica. As gargalhas. A professora. A caligrafia. A táctica. As borboletas. E disse-lhe que quando fosse grande não queria um jogo de jogar sentada na cadeira. A ver no ecrã. E que ia implorar ao Pai Natal um naco de terra só para mim. Com quatro-cantinhos. E quatro amigas! E um pedacito de giz.

 

A táctica não foi a de Nuno Álvares Pereira. Não se aprendeu a lição. E os quatro cantos que há são insuficientes para tanto infortúnio...

 

26
Jun08

o mar do meu país

Paola

p sombras de Portugal

 

Do meu país entrevê-se o mar. Mas o mar já perdeu a paciência. Esqueceu as descobertas. Cancelou as invenções. O mar do meu país está triste. Deixou de sorrir. Desaprendeu a letra da canção. O meu país já não sabe aparelhar os barcos. E ignora quem está além-mar, porque estranha o que acontece aqui. O mar está confuso. O azul-marinho é já azul-turvo. Da cor da decepção.

 

Foi uma terra de gemidos sofridos. Contidos e controlados. Cristalizados ao longo dos anos. Um dia, acordou bem cedinho e fez-se à água. Pegou em armas que não disparou. Com uma flor edificou um jardim que o sol iluminou. O Sol brilhou no céu. As raízes absorveram a água. As folhas absorveram o dióxido de carbono e a luz do Sol. As folhas transformaram a luz solar em açúcares e as flores cresceram.  Briosas. Benfeitoras na alforria de oxigénio para o ar. Admiráveis. A Lua foi para a cama. Fechou os quartos. Apagou a luz, adormeceu e acordou cheia de vontade. Só que o Sol ergueu-se primeiro.

 

O meu país imitou a estrela. Espelhou-se nela. E pediu ao planeta que fizesse as marés. E ele fez. Para cá e para lá. Para cima e para baixo. Movimentos ciclicamente repetidos. A notícia galgou o mundo. Uma preia-mar de comoções e canções. A flor desabrochava. O meu país deu risadas de Abril.

 

Depois vieram rumores vindos daí. O país cumpriu-os. Aliou-se à força dos outros, persuadido que a pujança era contagiosa. Só pelo contacto. E também pelas vozes que proferiam discursos arranjados e encomendados. Erro tamanho! E o meu país dobrou a melancolia. A maré arrastou-o para a praia. O barco já não navegava. Ficou por ali a ver os outros partir e florir.

 

Ele chegou e tudo se transfigurou. O meu país tornou a sorrir. E pintou-se de verde e vermelho. Com pedacinhos de amarelo. E reaprendeu a canção. Esqueceu que uma vez a praia foi de lágrimas. Dúvidas. Medos. Alguns segredos. E partiu seguro da vitória. Não se recordando da História.

 

Às vezes, o meu país suspende o canto. As lágrimas desejam o mar. Às vezes, o meu país não sabe onde está o mar. Ignora que Adamastor chorou. O pobre amou e ninguém notou. A gente do meu país derrama lágrimas salgadas com o sal do mar que é seu. E quer rir. O meu país assumiu as gargalhadas de Junho.

 

Ninguém reparou que o mar se cumpria. Que D. Sebastião não voltou. Porque o nevoeiro não o mostrou. Porque é um mito do tamanho de um país e, apesar de prodígio, não driblou o inimigo. Foi uma desgraça. O sofrimento e a esperança sustentaram a aflição do meu país que cantou em uníssono árias de vitória. Uma terra que esqueceu os oponentes. E nem reparou que os adjuvantes eram de papel. E o meu país está triste. Chora a veleidade de ter dissipado a espessa névoa. Tão triste e tão choroso! O meu país silenciou-se na derrota. As cores já debotam à janela. E ele foi-se embora. E acordam sorrisos amarelos.

 

E agora que os heróis não se cumpriram. Que as vitórias foram balelas. Que a euforia mirrou. O meu país vai contemplar o mar?

 

O meu país permanece a chorar. Com fundamento. E já tenho saudade do mar de pátrias lágrimas sem razão…

 

Por que motivo a Europa foge a sete pés sempre que nos aproximamos dela? Eu cá não arranjo resposta. Não sei não!

 

E veio-me à memória a Península Ibérica a vogar pelo mar n' A Jangada de Pedra.  Saramago deve ter-se enganado. A Espanha é que não. O melhor é mantermo-nos quietinhos. Acomodados à nossa quixotesca e afadigada periferia e de mão aberta para os fundos. O mar e o sol ficarão por nossa conta. 

 

 

 

 

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24
Jun08

na peneira

Paola

l   canções de embalar

 

Cheguei a casa com o corpo gordo de sorrisos. Restos de brincadeiras ameninadas ao intervalo. No princípio e no fim da escola.Tinha saído ainda o sol se espreguiçava no leito vestido de azul celeste. As galinhas dormitavam acocoradas nos fenos amarelados mudados diariamente. Outras sossegavam equilibradas no poleiro em poses acrobáticas. De vez em quando cacarejavam maledicências e blasfémias frívolas. É que o galo já lhes apregoara a manhã. Que elas recusavam. O galo era o protagonista do amanhecer. Ao resplandecer do dia, cantava para acordar quem teimava em dormir e sonhar que o mundo era feito de sapos. Ali mandava ele.

 

Excepto uma que tinha doze pintos para zelar. Chocara-os com enternecimento e orgulho comum à maioria das mães. Sem ter a certeza que todos os ovos lhe pertenciam. Isso era um facto que não lhe interessava. A maternal determinação libertava-a de tais ninharias. Queria parir e pronto. Imaginava-se a maior mãe do mundo. Mesmo que o seu mundo estivesse circunscrito por cercas de arame enleado nos arbustos cortados em forma de presídio. Nada mais lhe importava do que cumprir-se na maternidade. A galinha é uma enorme mãe. Adoptiva ou não. Ser mãe de ovos de outras galinhas não a preocupava. Seriam também seus filhos. Esperou pacientemente durante vinte e um dias. Não perguntava de que barriga chegavam, só que coubessem debaixo o seu corpo. Para os aquecer. Para os proteger. E discorreu que todos os filhos nascem do coração.

 

Pintainhos dependentes. Joviais. Áureos. Buliçosos. As mães nunca dormem descansadas. Ela também não. Porque era mãe. Inefável instante. Os bicos pipiaram a natureza a ampliar-se. As cascas dos ovos rumorejaram vida. A galinha rendia graças ao céu ao mesmo tempo que suplicava ao galo que se calasse. Não fossem eles acordar.

 

Muito de mansinho, harmonioso e doce, um canto embaraçava o perplexo galo.

 

Dorme, dorme

Meu pintainho adorado

Dorme, dorme

Meu filhinho guardado

Ó, i, ó ai!

 

Faz ó-ó meu lindinho

Que te quero muito bem

Dorme meu filhinho

Tua penugem também

 Ó, i, ó ai!

 

Se fosses um passarinho

Até poderias abalar

Assim voas baixinho

Mas aprendes a amar

Ó, i, ó ai!

 

Dorme, dorme

Meu pintainho adorado

Dorme, dorme

Meu filhinho guardado

Ó, i, ó ai!

 
A minha mãe acorda cedo. Mas não sabia canções de embalar. Nem tinha tempo. Nem voz. Já tinha despachado o meu pai. Prepara-lhe arroz de tomate e sardinhas fritas. Ele gostava. Eu também. Ela nem por isso. Chegara a minha vez. Pequeno-almoço tomado, mãos e dentes lavados e vamos lá vestir. Despacha-te! Gritava sempre comigo, mesmo quando o tempo sobrava. Isso não! Veste o amarelo. E eu vestia. O do laço atrás. E eu atava e desatava a fita que me atrapalhava. Não te sujes! Claro que não, mãe. Uma criança nunca se suja de propósito.

 

E lá fui. Carregada de livros e de recomendações. Agora era a vez do caminho. Não aceites boleia de ninguém! Tem juízo. Eu até me considerava uma menina atinada. Logo, para que servia aquela oratória todos os dias?

 

Um dia contou-me que eu dormia num berço. Que o embalava em movimentos ritmados e cadenciados. Enternecimento e enlevo. Carinho e amor. E cantava.

 

Eu estava na peneira

Eu estava peneirando

Eu estava na peneira

Eu estava namorando

 

Ó, i, ó ai!

 

Eu olhava para ela. Depois sorria e adormecia. E sonhava que a minha mãe era mesmo mãe-galinha…

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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