É Agosto. O sol anda quente e o tempo seco. Não chove por razões que o coração conhece. A chuva encharca os corpos. Forma-se nas nuvens que saracoteiam alegremente. Metamorfoses condensadas às voltas no ar por causa do vento. Penhascos negros. Desenhos fingidos. E o rapazote grita que vê um peixe no céu. E a mãe não vê nada. Não acredita Mas pergunta-lhe onde. E ele ri. O seu dedinho afoito aponta a direcção certa. E está ali. Um peixe e mais à frente um avião e uma ovelha. E muita gente também. E pergunta, apatetado com a falta de visão da mãe, se ela não está ver. Ela finge que sim. Tudo corresponde ao que ele diz, garante. No entanto, não consegue descortinar desenhos infantis. Muito menos no mar. Mas diz que sim. E riem-se culpados. Um viu o outro não. E o céu está azul, o mar é que não. E indica os olhos, o nariz a boca e o cão. Olha o rabo dele, mãe. Só que o cão morde, alerta a mãe. O petiz sabe, ela é que não. Na sua cabeça já não entram ilusões. Tudo é excessivamente real. E uma dor ganha forma definida. Dói com sabor a desilusão. Com aroma a desencanto.
E bem lá no alto, mais para a esquerda, vislumbra uma teia e uma aranha. Enredam-se os fios. São fortes e resistentes à chuva. Por isso, capturam as suas presas. Ela não compreende, porém vê. Assusta-se. E as nuvens seguem por atalhos vagabundeando pelo céu. Para locais que ela conhece, ele ainda não. Para um sítio longínquo chamado passado. Outro lá para a terra das recordações. E naquele instante deseja apenas o futuro. E chora. As mãos têm gotículas de água nos dedos. Os cabelos encaracolam-se com a humidade. O chapéu é um acessório, logo dispensável. O garoto pede-lhe que feche o guarda-chuva. Que não chove. Que ela está a imaginar chuva em Agosto.Mas em Agosto também chove. Chuva que não molha, porém arranha.
Em Agosto, a mãe escreve palavras que falam de afectos, ao mesmo tempo que dos seus olhos tombam prantos decepcionados. E no papel nasce um desenho manchado. O menino olha e anuncia satisfeito que a mãe rascunhou uma nuvem. E que ela parece uma rena a dançar. E pede-lhe que desenhe só para ele. Aponta para o Pai-Natal, mais além. Vês, mãe?
Faz mais! Assim, pode guardar os desenhos na gaveta. Ou encerrá-los no seu peito para mais tarde os redesenhar, mesmo contra o vento. Ou apagá-los com uma borracha branca. Ou riscá-los como os aviões fazem ao céu. E conclui que a vida é feita de enganos e desenganos. De ilusões e realidades. De lágrimas de rir e de chorar.
Admiráveis os pés que a gente tem! E que importa se não tenho culpa de os ter assim? Quem não aprove não gaste e deixe estar. Andar a dois pés é humano, por isso ando. Tanto que às vezes sinto que os gasto até aos joelhos. Depois poupo-os. Mas gosto.
Suportam pesos. Belezas e vontades. Aborrecem-se e calçam botas para esconder tempestades. E partem para manobras acrobáticas, persuadidos que andam nas nuvens. E caem dos saltos pontiagudos que a vida tem. Depois riem, enfiam uns chinelos nos dedos e palmilham o mundo inteiro. Sem parar porque a praia é o destino. No deserto a areia enrola-se nos dedos. Os passos não fluem e os pés enterram-se à espera que a tempestade cesse. Tapa o céu, de horizonte a horizonte, e os dromedários só têm uma bossa. Os camelos é que têm duas. Os pés desnorteiam-se, não reconhecem o caminho. E vão, sem rumo e andar é um movimento ilegal se um pé paira no ar. Por isso, movem-se os dois. São uns andarilhos, os pés. Contorcem-se padecidos. Impõem calçado cuidado quando sabem que a deslocalização é o fim. Então clamam a urgência de consolidar a tradição.
Os pés deambulam à beira-mar. Encontram livros na biblioteca. Ensaiam passinhos de dança e trauteiam canções de embalar. Desvendam flores campesinas e cobiçam o rio que corre sem parar. E à noite, levam-me para a cama. Gosto que os meus pés me carreguem com eles. Que me convidem a passear e a olhar. A colorir os sonhos com memórias e o arco-íris com vitórias e derrotas. Com afectos, também. Com pessoas. Gosto que os meus pés me transportem pelo mundo e dividam comigo viagens a haver. Gosto que os meus pés me sussurrem ao ouvido que hoje não vamos ali. Eu cedo. E ficamos aqui.
Os meus pés são incautos e crédulos. Tão simplórios! Andam atrás das pessoas. E vão com elas. Não admira que os pisem. Tivessem cuidado, berro abespinhada. Desiludida e pisada. E é nestes momentos que invejo a força da pata de um elefante. Pelo peso, tamanho e força descomunais. A boca de um hipopótamo também serve.
Enfiados nos chinelos, os meus amados viajantes olham para mim e riem. E partem em bicos de pés. Et voilà! Chaque danseuse a ses astuces personnelles...
E o tédio é um caos. Tudo numa inquietante tranquilidade. De vez em quando uma rã coaxa sem saber o que vem aí. A exuberância da vegetação esconde segredos calados. Adão está desesperado. Tanta terra para cuidar! Só tem que trabalhar. E ele não percebe nada de jardinagem. Eva também não. E têm fome. E a maçã é uma estratégia. Começam os desencontros. Os interesses acumulam-se. A felicidade é uma miragem. O mal e o bem existem no pecado original. E eles vivem o tormento desse momento banal. E que importância tem se não existem bares para afogar as mágoas? A angústia e o desespero atrapalha-lhes a vida e não agem por mal. Têm fome de tudo. De amor também. Sofrem. Valem-se a si próprios. Não se bastam. A solidão enruga-lhes a apreensão da realidade. Circunscreve-lhes o mundo, porque estão nus. E a nudez é pecado. E lamentam que ninguém se encurrale numa árvore qualquer e descubra o paraíso.
O mundo está aí. Tal e qual como o Homem quer. À sua imagem e semelhança. Com cobras e lagartos. Guerras e fomes. Misérias humanas originais. Pequenas e grandes transgressões, porque as fotocópias já não são desculpa e o pecado não é o original. Um copo de água ajuda?
A admiração começa onde acaba a compreensão. Charles Baudelaire, poeta francês, tem razão. Por isso, é que nos assombramos quando deixamos de perceber. Com os sentidos todos. Também com o corpo. E com a alma que não sei bem o que é, mas é aquela parte de nós que tem direito a ir para o céu. Os humanos têm, os outros bichos não. Até concordo. Em alguma coisa nos havíamos de diferenciar. Que seja na alma. Às vezes, a filosofia dá jeito.
Admiro-me sempre. Só porque tenho sensibilidades plurais. Tanto que não entendo que queiram reduzir os professores deste país a uma multidão silenciosa. A circunscrevê-los porque gente com opinião.
E não posso deixar de me admirar, no sentido de não ficar indiferente, quando leio que se preparam para oferecer um pequeno complemento salarial a alguns avaliadores, que é como quem diz a alguns controladores, isto é, aos capatazes. Esse complemento não excederá os 100 euros mensais mas será suficiente para comprar as consciências de milhares de aspirantes a controladores. Em época de profunda crise económica, social e cultural e face à aparente ausência de alternativa ideológica e económica ao modelo único globalista neoliberal, 100euros é o suficiente para comprar as consciências e a vontade de milhares de professores que o são sem vocação. E serão esses, os professores sem vocação, que mais depressa venderão as suas consciências a trairão os colegas de profissão. E é então que esta manobra de grande perversidade atingirá o seu zénite: os piores professores, aqueles que vieram parar ao ensino sem vocação, serão gradualmente transformados em capatazes e, subitamente, uma realidade tão maligna que eu diria digna de uma conspiração à escala nacional, virá à luz do dia: os piores professores farão parte dos eleitos, serão os capatazes, muitos deles ficarão libertos da maçada das aulas e verão a sua traição recompensada com um complemento salarial. Este cenário parece-lhe irreal? Digno de um filme de terror? É apenas a realidade apanhada no seu processo de criação de forma idêntica à do fotógrafo que consegue uma foto no exacto momento em que as minúsculas cobras se libertam dos ovos. *
E eu, que não suporto cobras, já sinto na pele, e o tacto é um sentido, a gula da ascensão… Não comprendo, mas também não admiro. Apenas me espanto.
E o inferno passará a ser um local arejado, com várias salas, a que se acede por um enorme portão. E as almas que por lá andam são obrigadas a trabalhar como fazedores de papéis. E ardem, ardem sem que ninguém perceba o seu sofrimento.
Um sábado gostoso. Passado como quem saboreia os acepipes que, na mesa, alimentam a fome que se senta à espera de mais. Um menu de colesterol para quem come. E comemos todos. Esta história das refeições terem preços acessíveis e depois colocarem à frente dos nossos olhos ou da boca, o que é bem pior, aquelas coisas fantásticas não dá. Desde as azeitonas e manteiga ao queijo, do presunto à linguiça assada, morcela e outros que tais, torresmos ou gambas à la qualquer coisa, de preferência em francês que é para dar um tom distinto ao repasto, alheira de caça, presunto com melão e tudo o mais que nos passar pela cabeça, vale tudo neste jogo de sedução alimentar. E mais o vinho daqui e dali e também do estrangeiro. E depois? Encomenda-se o quê, quando já se comeu o que havia em cima da mesa? Nem valia a pena perguntar. Mas lá vem o empregado muito solícito, simpático e, na maioria das vezes, barrigudo e com bigode enrodilhado nas pontas. A encomenda faz-se no meio de estou cheio, já não posso mais e coisas assim. Todavia pode-se. E come-se e bebe-se e come-se. Muito bem. Tão bem que se volta na primeira oportunidade que surja. E recomenda-se. E eles também vão e comem. E recomendam. E voltam.
Portugal é um país onde se come bem. Sem dúvida. Portugal é um país onde a obesidade é um dos principais agentes de risco para o aumento de outras doenças que lesam a saúde. Hipertensão, diabetes, colesterol alto e acidentes vasculares cerebrais sucedem-se. A estatísca confirma a enfermidade. Portugal é culpado de estar doente. E continua a servir admiráveis iguarias à mesa da gente. É verdade que estes hábitos vêm de outros tempos. Logo com o nosso primeiro. D. Afonso Henriques era muito forte e alto, caso pouco comum na época. Obviamente devido a uma excelente alimentação. Só pode. Não é por acaso que as desavenças com a mãe deram no que deram. E o Capuchinho Vermelho? E a boca enorme do lobo que queria comer a menina? E os pitéus que a mãe colocara na cesta para a avó? Enfim, não há mesmo cura para esta gula colectiva. Este gostinho transmite-se por direito de sucessão. Nunca mais nos livramos do maldito do colesterol.
Por causa do colesterol, e porque gosto, prescindi das entradas. Comi muita salada, fruta e peixe. E bebi água, claro. Não vá o diabo tecê-las. Não me consta que o dito tenha morrido de ataque cardíaco.
E antes e depois e durante, passeámos palavras ao sabor do vento e do sol. E da fome. E deambulámos à beira-rio. Sentimos a brisa. O fresco. Espreitámos o horizonte. Entre nós e o Sol eas nuvensexistia o ar!E rimos até as gargalhadas atrapalharem as lágrimas. É que pela manhã não renunciámos à tigelinha de arroz-doce. Com canela. É só ao sábado…
Ao passar peloRevisitar a Educaçãodeparei-me com este texto de António Botto. O boato e a mentira não são invenções modernas, todos sabemos. Deve ter nascido no momento em que o Homem começou a ouvir. Depois a falar. Há muito que andam por aí, têm a mesma idade que nós. São males danados na vida da gente. Propagados por quem não tem nada para fazer. Também por quem os edifica na má fé. Na ingorância ou na vontade descontrolada e narcísica de afirmação. São bocas escancaradas convencidas que morder é próprio do cão. Existem mentirosos de todas as cores. Temos boateiros de todos os sabores. Que os há, há.
Etimologicamente, o grego allegoría significa “dizer o outro”, “dizer alguma coisa diferente do sentido literal”. Talvez não seja o caso. Não há sentidos ocultos. Interpretações hermenêuticas. Seuma alegoria é aquilo que representa uma coisa para dar a ideia de outra através de uma inferência moral, então este texto é uma alegoria. Ou quase.
Vale como exemplo.
O pequeno Raúl saiu da escola a correr, chegou a casa muito excitado e, depois de beijar a mãe, exclamou: - Já sabes o que dizem do António? - Espera um pouco, tem paciência. Antes de principiares, lembra-te das três peneiras… - Mas quais peneiras, minha mãe? - Sim; vais ouvir e saberás. A primeira chama-se verdade. Tens a certeza de que é certo o que me queres dizer? - Não; se é certo, não sei. - Vês?... E a segunda chama-se benevolência. Será benevolente, será boa, essa notícia? - Não, minha mãe, não é boa. - E a terceira chama-se necessidade. Será necessário repetires tudo isso que te contaram desse teu camarada e amigo? - Não, minha mãe. - Pois se não é necessário, nem benevolente, e talvez nem seja verdade, entendo que é preferível, meu filho, calares a tua boca.
Sou do tempo em que a escola que respondia às necessidades de uma sociedade calada e torturada. Aprendia-se o que eles queriam que nós aprendêssemos num sistema agrilhoado e centralizado. Num livro único. A preto e branco. Com ilustrações estúpidas e distantes da realidade.
A escola que o Estado Novo impôs em Portugal era elitista. A população portuguesa era analfabeta. E Portugal a ignorância foi o expediente de um regime que censurava a informação e proibia as liberdades políticas. Impunha uma orientação religiosa. Separava os rapazes e das raparigas. Os professores utilizavam com muita frequência castigos corporais severos. É tudo verdade. Há testemunhos.
Atravessei a chamada “primavera marcelista”, apesar da minha inconsciência política. Por isso, só depois de 1974 é que comecei a perceber a razão dos meus acidentes escolares. Mas não me queixo muito. Uma ou outra reguada e pouco mais. O que odiei mesmo foram as chamadas a História, já no ensino secundário.
Nada do que aprendi, ou memorizei, me fez mal. Nem sequer a catequese ao sábado e a meia hora diária a cargo das freiras que viviam num convento mesmo ali ao lado. Talvez tenham contribuído para a construção da minha religiosidade. Ou a falta dela. Agradeço-lhes o tributo para o aperfeiçoamento do meu sentido crítico. É que a algumas práticas da igreja católica portuguesa não lembram ao mafarrico. Nem o óleo de fígado de bacalhau que provocava vómitos contidos e lágrimas pequeninas, não fosse a professora ver. Também não sei se fez bem. Mal não fez. Até as fotografias colocadas por cima do quadro, idolatradas por obrigação, foram úteis para mim. Aprendi a reconhecer os rostos daqueles que sugaram a liberdade e ofenderam um povo com a violência do poder.
Não foram as lições de Salazar, e seguidores, que me fizeram pensar como eles. Todavia, esses preceitos ensinaram-me que os deveria rejeitar. E ainda hoje não aceito que o País seja, como era, representado por uma galeria de santos, mártires e heróis. E tantos que fazem a primeira página dos jornais…
Aguentei e teimei. Hoje sou professora. Com um programa centralizado, e único, que cumpro. Com liberdade de dizer. Cerca de 34 anos depois de Abril, a sociedade portuguesa ainda não compreendeu que os professores de hoje não são os de então. Que se é professor 365, ou 366, dias por ano. E ao serão. E ao fim-de-semana. Agora também por email. Porque um professor não é um produto acabado.
Hoje, da mesma forma que odeio um regime que analfabetizou um país, não suporto que me digam que tenho 3 meses de férias. É que não tenho, nem nunca tive.
Quanto tempo mais é preciso para que se saiba que os professores não têm culpa das cambalhotas que o ensino tem dado em Portugal? É que eles também são vítimas.
Ao sábado como arroz-doce. Na dona Perpétua, como sempre. Uma gulodice ao fim-de-semana. Banal. Corriqueira. Gostosa. Admirável. Prefiro as coisas simples e verdadeiras. Sem intrujices com sabor a canela. Sem astúcias com cheiro a limão. Gosto que os meus sentidos estejam despertos para a verdade açucarada de uns bagos desfeitos em leite fervente. Não os quero atiçados por estranhezas cozinhadas ao intervalo. Quero comer arroz-doce que me saiba a arroz-doce. Odiá-lo-ia se não fosse assim. Se um dia me souber a embustice não vou ter com ele aos sábados. Nem noutro dia qualquer. Mas ficarei decepcionada e muito amofinada.
Que eu minta, menos mal. Se as estatísticas dizem que eu o faço a cada cinco minutos, que seja. Afinal, toda a gente mente com quantos dentes tem. O arroz não, que é genuíno.
Verdejantes plantações. Terraços de verde que eu via da janela e que ainda persistem na minha memória. Lá estavam eles muito quietinhos, com os pezinhos na água. Quando o vento chegava ficavam desinquietos. E as ondas de verde propagavam-se no horizonte. Na monda do arroz, elas cantavam e cobiçavam os rapazes com sorrisos e olhares. Os braços rebaixavam-se na água a desenraizar as ervas daninhas. A sua vida era fazer essas coisas e molhar-se no solo alagado. E cantar com as mãos enrugadas e calejadas. A voz era límpida e sorria sempre que via crescer as espiguetas do arroz. E rezavam para que a colheita fosse boa.
O arroz não disfarça. É assim e pronto. As pessoas é que não. Movem-se por interesses que extravasam as valas dos arrozais. O arroz rodopia ao sabor do vento e dança com ele. As pessoas não ouvem o que ele lhes diz. Com doçura. Olham para o Sol e querem a luz só para si, mesmo que o mundo fique às escuras.
Enquanto for capaz, não deixarei de comer arroz-doce. Só por ser autêntico. Como os olhos celestiais com quem o partilhei. E tudo foi tão gostoso!
As brincadeiras dos meninos e das meninas do meu país acontecem no 2.º andar, Frente, de um imóvel situado por aí. Numa cidade grande ou pequena, tanto faz. Entretêm-se nos infantários desde as sete da manhã. Os mais crescidos só brincam aos intervalos. Em recreios de mosaicos. Poucos em chão empoeirado e lamacento. Uns e outros não têm condições. Os pais vão recolhê-los tarde. O tempo é pouco e gasta-se no banho e no jantar. Ficam-se a dever diálogos, partilhas e afagos. Os mais crescidos consolam-se com a televisão que está no quarto. E modernizam recados pela Internet. Até tarde. Muito tarde. No outro dia chegam à escola com a cabeça a dormir e com os dedos cansados de tanto escrever. Palavras encriptadas. Erros caligráficos. Abreviaturas inventadas. Estrangeirismos desnecessários. Mas escrevem e dialogam. Trocam afectos. Tudo à distância. Tudo filtrado por um monitor TFT. Tudo tecnologia de ponta. No quarto ao lado, os pais dormem um sono estafado e moído de anos de trabalho. Não dão por nada. Sonham que os meninos estão a dormir. Profundamente. E mesmo ali, dentro de casa, eles correm perigos estúpidos. Porque acauteláveis.
Os meninos do meu país brincam e conversam no quarto. Ou na rua. Até tarde. Tanto uns como outros não sabem que a vida é astuciosa. Que há pessoas sem escrúpulos. E eles são incautos. Mas hábeis a manobrar tecnologias. E fazem perguntas que os pais não escutam, por isso não respondem. Adormeceram sem tempo para dormir.
Os meninos da minha terra brincam na relva do jardim, convencidos que estão a jogar às escondidas numa seara de milho. Esticam-se em argolas e correntes persuadidos que estão a trepar às árvores. Olham para o lago com patos de aviário, como se eles próprios nadassem no ribeiro da aldeia da avó. Apavoram-se se um gafanhoto chega primeiro que eles ao escorrega. Gritam atormentados com a presença de uma libelinha. E garantem que são bichos esquisitos. Horrendos. Ferozes. E os bichinhos abalam espavoridos, sem compreender tamanha histeria. E vão contar aos outros animais que viram uns bichos com costumes requintados a berrar no jardim.
Os meninos da minha terra não têm chão para brincar. O alcatrão é negro e malcheiroso, mas eles gostam. A terra não, que suja. É lama e pó. E ervas e bichos. E árvores e flores. E frutos e céu.Choveu pouco, mas o cheiro da terra molhada provoca-lhes enjoos. O cheiro a hortelã, a orégãos e a coentros são fedores. Por isso, escrevem mensagens e usam a Internet para descobrir como é uma couve portuguesa.
E ao fundo da rua, onde existia uma horta com uma nespereira generosa, há buracos. Valas abertas à espera de alicerces. Amanhã, as nêsperas são janelas com aros cromados e os cortinados esvoaçam afugentando os pardais.
Lá dentro, indiferente ao vento e às borboletas, um garoto joga com uma bola virtual. Num jogo fantasiado. Com jogadores a fingir. Ao lado, pacotes de batatas fritas amontoam-se vazios.
O pai nunca o levou ao futebol. Não tem tempo. Na televisão da sala, a notícia sabe a calamidade nacional. E ele não percebe o motivo do alvoroço. Nem a causa da obesidade infantil.
Ainda a propósito de chorar gargalhadas, sucessos, êxitos, emoções e algumas contrariedades. Quando um ciclo de três anos acaba, a coisa é muito mais que lamúria. É perda, incerteza e cumplicidade. De ambos os lados. Eles sabem que é inevitável. Que crescer implica, também, mudar de escola. Ganhar e perder amigos. Mas choram e riem. Fazem promessas. É sempre assim.
- Obrigada, professora!
Não percebi o destinatário dos agradecimentos. Não conhecia quem falava. Não é comigo, pensei. E permaneci nos meus afazeres.
- Professora…
Olhei, porque o sou. Não que conhecesse a pessoa que olhava para mim. Esbocei um sim um tanto incrédulo. Igualmente idiota.
- Sim, é consigo que quero falar.
Levantei-me. Dirigi-me até ela. É a minha mãe, professora. Ouvi do outro lado do corredor. E o sim saiu, agora, interrogativo. A senhora falou. Sorriu. Agradeceu. Por si e por mais umas tantas mães que agradeciam também. E por eles, pelos alunos. A minha voz encolheu-se face ao elogio. Não fiz nada de especial. Apenas o meu trabalho. Repete que sim. Que fui rigorosa e que isso foi bom. Eu sorri ironias e cansaços. Agradeceu o apoio dado à filha. Pois, só que isso é a minha profissão. Que ela tinha compreendido. Ainda bem. Fico muito contente. E que se esforçou para não me defraudar com a nota do exame. E os outros do mesmo modo. Aceitaram o meu desfio. Conseguiram. Ainda bem! Particularmente por eles.
- Ela e eles, apontou, fizeram hoje uma entrevista… Candidataram-se a um estabelecimento de ensino... E lembraram-se de si, das exposições orais… Obrigada, por tê-los ajudado.
E jorraram palavras provocadas pela circunstância. Claro que vão conseguir. É a minha profissão. E eu gosto mesmo é dos alunos. E mais umas tantas frases estouvadas. Garanto que suspirei de alívio quando deu o assunto por encerrado. E foram embora a olhar para o futuro.
É verdade que eu fiz o que devia e eles também. Mas gostei. Assim, a minha barriga nutriu-se com mais uns afagos. Outra vez.
Sempre me esforcei por dar sentido às aprendizagens. Por lhes retirar alguma da excessiva carga teórica que têm. Ainda bem! É que os moços foram à entrevista. E nas suas cabecitas entraram memórias. Tem lógica. Faz sentido que os alunos percebam. E os pais também. Que o sucesso deles é, e sempre foi, o meu.
Para que conste. Numa tarde cheia de sol e calor, vi brilho no olhar deles. Recebi uma medalha de regozijo com sabor a entrada no 10.º ano. Não é de ouro, nem de prata. Nem sequer de bronze. Não é de metal sequer. Não tem cotação no mercado bolsista.
Apenas fica cativa no meu coração. Não revelo outros detalhes… não a vá alguém encontrar.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]