Em Agosto o país está de férias. Abundâncias de Verão. O café da rua tem grades na janela. E procurar alternativas à rotina dá trabalho. A mercearia do Mário reabre mais tarde e encerra na última semana. E lá se vai o pão da manhã. Quente e estaladiço. A fruta também. A Elisabete da papelaria preferiu os Açores. A loja de informática não vende consumíveis porque os fornecedores estão de férias. O Centro de Saúde vai abrindo. Hoje o médico não veio. Está de férias. Mas veio outro. Para quê se a farmácia anuncia rotura de stock? A Maria não partilha conversas bisbilhoteiras na mesa do café, pela de manhã. Procurou a praia que não é aqui. A poluição sonora é um estorvo melhorado. Também os carros procuraram o ócio. E levaram ruídos e barulhos ensurdecedores. Motores alvoroçados desde a manhã. Buzinas nervosas a denunciar estacionamentos suprimidos. Ou acenos expansivos. O senhor Alfredo da padaria pegou na tenda e aferrolhou a porta. Levou o cão e disse que o melhor era fechar. Já escasseava o pão. Refilava exaltado que todos têm férias e que ele também é gente. E os autocarros circulam na rua com menos frenesim. E a São, que é cabeleireira, avermelha-se na República Dominicana. O matracar infernal das maquinarias na oficina das marquises e estores amansou. A rapaziada é jovem e está a adubar-se na praia. A Joana teve que ir à terra. Há que visitar a família. E Agosto dá-lhe tempo. É por tudo isto, que a minha rua se despiu do seu reboliço rotineiro. Um deserto sem oásis. As dunas são miragem e a areia está no outro lado. Do lado do Sol.
Agosto está de férias. Viajar é viajar. E ele aí vai. Descansar é descansar. E ele fica por aqui. Dormir é dormir. E ele acorda tarde. Aqui e ali. Agosto é preguiçoso. Mas não quer assumir que a preguiça faz bem. Não trabalha. Está de férias. Não pode. E não se lembra que só será gaiteiro, se for bonito o primeiro de Janeiro. Janeiro já lá vai. E estava um frio de estalar os ossos. Conversar é conversar. E ele não se cala ao café. O assunto é que escasseia. As palavras também.
Agosto só fala de férias. De praia com muito Sol. Por vezes, interrompe e traz para a conversa palavras campesinas. Conta viagens. Devolve saudações da família.
Finge-se jovem. E garante que o seu corpo é perfeito. Vangloria-se da sua pele dourada. E não conta a viagem que não fez. Confessa-se um viajante compulsivo. Percorre o mundo inteiro. Mas só escolhe locais com praia. E com sol. Depois regressa e lê no jornal que o endividamento das famílias aumentou. Que um novo recorde foi batido. E pergunta em que modalidade. Garante que tem estado atento aos Jogos Olímpicos e não deu por nada.
E debaixo do chapéu-de-sol da esplanada do café do senhor João, a Lena anunciava a sua sorte. Estava de férias. Por ser Agosto. Almoçava e jantava com os miúdos. E passeava com eles. E contava como eles se riram no Parque Infantil. Hoje, não faço nada. Juro! Reservei este dia para não fazer nada. E nada é nada. Durmo em casa e como no restaurante. Talvez nem coma! Os rapazes estão com a avó. Ele foi trabalhar. Que bom! Nada! Não farei nada. Só porque estou de férias e é Agosto. Vou jantar com uns amigos. Depois não tenho tempo.
E todas riram das palermices. Eu enunciei, em tom solene, que concordava em absoluto. As férias também servem para não fazer nada. Está iniciado o meu dia da mais buliçosa preguiça. Nada. E não faço nada. Não por ser Agosto. É mesmo porque não quero que Agosto mande em mim. Safa! Já basta Dezembro.
Porque a temperatura sobe. Os corpos exibem-se sem preconceitos. Menos roupa. Mais transparências. Muitos pezitos descalços. A praia é um destino. A música sempre. Au soleil. Mon eldorado. Et la vie c'est comme ça... Bon week-end!
Eu vejo-o assim. Com um megafone. Talvez com um microfone na mão. Com o seu nome rabiscado em letras apressadas. A lona é vermelha. Ele é moreno, talvez resultado da dureza dos exteriores. Tem bigode, talvez por causa do génio. Já ouvi que não há acordo quanto à etimologia da palavra bigode. Uns filmaram-na na China, outros associam-na aos visigodos. Depois, há os que a consideram grega e até mesmo portuguesa. Enfim, uma trajectória de narrativas abertas. Partilho, sem qualquer fundamento, a tese germânica. Parece que era hábito jurar pela honra do bigode, "Beit Got!". Ou seja "Por Deus!". A gritaria do “corta”, “corta”, de quem desgraçadamente observa os planos de nós. Imagino o mau humor do realizador sentado numa cadeira de lona. Por Deus, berra o homem farto de mandar repetir a cena. Arrufos de contadores de histórias.
A sala escurece e lá ao fundo o ecrã reluz. O filme começa com um grande plano. Um rio. Azul. Sereno. Um rio que corre tranquilamente por planícies alentejanas até se abraçar à cidade. Uma linda história de amor. Uma paixão acalorada. Abençoada por cegonhas brancas. Apadrinhada por roazes brincalhões. A câmara procura as dunas, geralmente pouco povoadas. Fixa-se numa. Um plano de pormenor mostra um casario branco. Com barras azuis. Não mais do que cinco ou seis casas. Uma delas eleva-se ao primeiro andar. A janela fez-se olho da câmara e mostra o rio e os arrozais. O areal... São cenas repetidas. O passado sobrepõe-se ao presente que está ali. A minha cabeça está cheia de murmúrios. São sinfonias com cheiro a maresia.
Disperso algures pela plateia, um homem toca concertina em animada interpretação. Toca-lhe como acarinhava a mulher. Sabia-a de cor por tantas vezes a executar. Tinha sempre audiência. Não muito longe dele, uma menina sustem o impulso de lhe falar, de lhe dizer o quanto gosta de o ouvir. Por essa altura, já os espectadores, homens, mulheres e crianças, se tinham dado conta que se tratava uma realização em registo de amor. De alegria. De vez em quando, o homem da concertina recita poemas. Quadras que inventa no momento. E ri. Os figurantes aplaudem nos seus corpos sentados nos degraus de uma escada que conduz ao piso superior. As personagens secundárias gritam enfado. Mas riem e cantarolam também. Os acordes do acordeão escapam-se com elas pela porta da cozinha. Chegam até ao pinheiro. Manso na sua folha persistente. O corpo arredondado sugere um guarda-chuva, sobretudo no Inverno. Mas é Verão. No tronco a casca grossa, parda e muito gretada denuncia-lhe a idade. No lugar dela surge uma coloração castanho-avermelhada. Num dos seus braços baloiça-se um balancé de corda. A menina adora-o e brinca com ele.
A câmara alonga-se num plano de conjunto. Fixa-se na fonte. Mostra as piteiras orgulhosas dos figos suculentos. Mas os picos, senhor! Colhem-se com uma tenaz e rolam-se na areia. Os pormenores passam em forma de analepse presentificada. Técnica de cinema. Um ângulo perfeito. Volta à fonte em jeito de clareamento. O escuro mostra um homem. Alto, com os passos cansados pela idade, cabelo curto. Muito curto. Segue descalço pela areia. Percebia-se que a manhã mal tinha principiado. O Sol ainda não tivera tempo de aquecer o caminho. O homem aproxima-se. A câmara acompanha-lhe os movimentos. Aponta para um painel de azulejos, uma imagem, uma legenda. O Sagrado Coração de Jesus, afinal a fonte tem nome. É lugar mágico, um espaço mítico, inserida num tecido feito de areia e de piteiras com cheiro a rosmaninho. Um lugar poético. Um cântaro vazio espera pelo final do ritual, apesar do cansaço dos braços que o voltariam a encher e a carregar. O homem e a fonte fundem-se num só. A água lava-lhe o rosto, os pés, as mãos. Mata-lhe a sede de viver. Ele acredita que a morte não gosta daquela água. É pura, santa, de nascente. O homem pega na bilha de barro à espera que seja de novo manhã. Repetirá a acção. Certamente!
A câmara abre o ângulo, vira-se para a esquerda. Não dá importância ao quintal. Às batatas-doces, às cebolas, nem às melancias. Corre desenfreadamente. Mais para a esquerda, mais... Pára! Acção, grita a claquete. A sala de cinema pinta-se de azul. É um rio. Não! É o rio nos fluxos e refluxos das marés. E os caranguejos escondem-se nos juncos.
No areal vê-se um enxovalho total. Uma casa pré-fabricada instalara-se ali. Que abuso! Grita a plateia. Um aglomerado de madeira protegido por fitas que proíbem o contacto de intrusos com a arte. A câmara mostra. Ali se instalou um estúdio de cinema. Um acervo de actores, actrizes, fitas, realizadores, bobinas, projectores, guiões, bandas sonoras, fotografias, ópticas... tudo a falar francês, sem acento alentejano.
A minha mãe chorou. Não pela praia, mas por se ver impedida, por uma fita amarela, de entrar na casa que a vira nascer. A fonte é actriz de cinema, mãe! Depois rimos. Rimos com a certeza que nenhum daqueles actores terá melhor desempenho que o meu avô.
Numa película a preto e branco... com sabor a mar!
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]