Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

ponto de admiração

ponto de admiração

20
Ago08

aquecer

Paola

 

dia de coisa nenhuma

mês calado

 

Em Agosto o país está de férias. Abundâncias de Verão. O café da rua tem grades na janela. E procurar alternativas à rotina dá trabalho. A mercearia do Mário reabre mais tarde e encerra na última semana. E lá se vai o pão da manhã. Quente e estaladiço. A fruta também. A Elisabete da papelaria preferiu os Açores. A loja de informática não vende consumíveis porque os fornecedores estão de férias. O Centro de Saúde vai abrindo. Hoje o médico não veio. Está de férias. Mas veio outro. Para quê se a farmácia anuncia rotura de stock? A Maria não partilha conversas bisbilhoteiras na mesa do café, pela de manhã. Procurou a praia que não é aqui. A poluição sonora é um estorvo melhorado. Também os carros procuraram o ócio. E levaram ruídos e barulhos ensurdecedores. Motores alvoroçados desde a manhã. Buzinas nervosas a denunciar estacionamentos suprimidos. Ou acenos expansivos. O senhor Alfredo da padaria pegou na tenda e aferrolhou a porta. Levou o cão e disse que o melhor era fechar. Já escasseava o pão. Refilava exaltado que todos têm férias e que ele também é gente. E os autocarros circulam na rua com menos frenesim. E a São, que é cabeleireira, avermelha-se na República Dominicana. O matracar infernal das maquinarias na oficina das marquises e estores amansou. A rapaziada é jovem e está a adubar-se na praia. A Joana teve que ir à terra. Há que visitar a família. E Agosto dá-lhe tempo. É por tudo isto, que a minha rua se despiu do seu reboliço rotineiro. Um deserto sem oásis. As dunas são miragem e a areia está no outro lado. Do lado do Sol.

 

 

Agosto está de férias. Viajar é viajar. E ele aí vai. Descansar é descansar. E ele fica por aqui. Dormir é dormir. E ele acorda tarde. Aqui e ali. Agosto é preguiçoso. Mas não quer assumir que a preguiça faz bem. Não trabalha. Está de férias. Não pode. E não se lembra que só será gaiteiro, se for bonito o primeiro de Janeiro. Janeiro já lá vai. E estava um frio de estalar os ossos. Conversar é conversar. E ele não se cala ao café. O assunto é que escasseia. As palavras também.

 

Agosto só fala de férias. De praia com muito Sol. Por vezes, interrompe e traz para a conversa palavras campesinas. Conta viagens. Devolve saudações da família.

Finge-se jovem. E garante que o seu corpo é perfeito. Vangloria-se da sua pele dourada. E não conta a viagem que não fez. Confessa-se um viajante compulsivo. Percorre o mundo inteiro. Mas só escolhe locais com praia. E com sol. Depois regressa e lê no jornal que o endividamento das famílias aumentou. Que um novo recorde foi batido. E pergunta em que modalidade. Garante que tem estado atento aos Jogos Olímpicos e não deu por nada.

 

E debaixo do chapéu-de-sol da esplanada do café do senhor João, a Lena anunciava a sua sorte. Estava de férias. Por ser Agosto. Almoçava e jantava com os miúdos. E passeava com eles. E contava como eles se riram no Parque Infantil. Hoje, não faço nada. Juro! Reservei este dia para não fazer nada. E nada é nada. Durmo em casa e como no restaurante. Talvez nem coma! Os rapazes estão com a avó. Ele foi trabalhar. Que bom! Nada! Não farei nada. Só porque estou de férias e é Agosto. Vou jantar com uns amigos. Depois não tenho tempo.

 

E todas riram das palermices. Eu enunciei, em tom solene, que concordava em absoluto. As férias também servem para não fazer nada. Está iniciado o meu dia da mais buliçosa preguiça. Nada. E não faço nada. Não por ser Agosto. É mesmo porque não quero que Agosto mande em mim. Safa! Já basta Dezembro.

 

 fotografia de Paola

28
Mai08

à janela - devaneios pelo cinema

Paola

Estuário do Sado monte Comporta, Herdade de Murta, Poisadas, Rio Sado

 

Eu vejo-o assim. Com um megafone. Talvez com um microfone na mão. Com o seu nome rabiscado em letras apressadas. A lona é vermelha. Ele é moreno, talvez resultado da dureza dos exteriores. Tem bigode, talvez por causa do génio. Já ouvi que não há acordo quanto à etimologia da palavra bigode. Uns filmaram-na na China, outros associam-na aos visigodos. Depois, há os que a consideram grega e até mesmo portuguesa. Enfim, uma trajectória de narrativas abertas. Partilho, sem qualquer fundamento,  a tese germânica. Parece que era hábito jurar pela honra do bigode, "Beit Got!". Ou seja "Por Deus!". A gritaria do “corta”, “corta”, de quem desgraçadamente observa os planos de nós. Imagino o mau humor do realizador sentado numa cadeira de lona. Por Deus, berra o homem farto de mandar repetir a cena. Arrufos de contadores de histórias.

 

A sala escurece e lá ao fundo o ecrã reluz. O filme começa com um grande plano. Um rio. Azul. Sereno. Um rio que corre tranquilamente por planícies alentejanas até se abraçar à cidade. Uma linda história de amor. Uma paixão acalorada. Abençoada por cegonhas brancas. Apadrinhada por roazes brincalhões. A câmara procura as dunas, geralmente pouco povoadas. Fixa-se numa. Um plano de pormenor mostra um casario branco. Com barras azuis. Não mais do que cinco ou seis casas. Uma delas eleva-se ao primeiro andar. A janela fez-se olho da câmara e mostra o rio e os arrozais. O areal... São cenas repetidas. O passado sobrepõe-se ao presente que está ali. A minha cabeça está cheia de murmúrios. São sinfonias com cheiro a maresia.

 

Disperso algures pela plateia, um homem toca concertina em animada interpretação. Toca-lhe como acarinhava a mulher. Sabia-a de cor por tantas vezes a executar. Tinha sempre audiência. Não muito longe dele, uma menina sustem o impulso de lhe falar, de lhe dizer o quanto gosta de o ouvir. Por essa altura, já os espectadores, homens, mulheres e crianças, se tinham dado conta que se tratava uma realização em registo de amor. De alegria. De vez em quando, o homem da concertina recita poemas. Quadras que inventa no momento. E ri. Os figurantes aplaudem nos seus corpos sentados nos degraus de uma escada que conduz ao piso superior. As personagens secundárias gritam enfado. Mas riem e cantarolam também. Os acordes do acordeão escapam-se com elas pela porta da cozinha. Chegam até ao pinheiro. Manso na sua folha persistente. O corpo arredondado sugere um guarda-chuva, sobretudo no Inverno. Mas é Verão. No tronco a casca grossa, parda e muito gretada denuncia-lhe a idade. No lugar dela surge uma coloração castanho-avermelhada. Num dos seus braços baloiça-se um balancé de corda. A menina adora-o e brinca com ele.

 

A câmara alonga-se num plano de conjunto. Fixa-se na fonte. Mostra as piteiras orgulhosas dos figos suculentos. Mas os picos, senhor! Colhem-se com uma tenaz e rolam-se na areia. Os pormenores passam em forma de analepse presentificada. Técnica de cinema. Um ângulo perfeito. Volta à fonte em jeito de clareamento. O escuro mostra um homem. Alto, com os passos cansados pela idade, cabelo curto. Muito curto. Segue descalço pela areia. Percebia-se que a manhã mal tinha principiado. O Sol ainda não tivera tempo de aquecer o caminho. O homem aproxima-se. A câmara acompanha-lhe os movimentos. Aponta para um painel de azulejos, uma imagem, uma legenda. O Sagrado Coração de Jesus, afinal a fonte tem nome. É lugar mágico, um espaço mítico, inserida num tecido feito de areia e de piteiras com cheiro a rosmaninho. Um lugar poético. Um cântaro vazio espera pelo final do ritual, apesar do cansaço dos braços que o voltariam a encher e a carregar. O homem e a fonte fundem-se num só. A água lava-lhe o rosto, os pés, as mãos. Mata-lhe a sede de viver. Ele acredita que a morte não gosta daquela água. É pura, santa, de nascente. O homem pega na bilha de barro à espera que seja de novo manhã. Repetirá a acção. Certamente!

 

A câmara abre o ângulo, vira-se para a esquerda. Não dá importância ao quintal. Às batatas-doces, às cebolas, nem às melancias. Corre desenfreadamente. Mais para a esquerda, mais... Pára! Acção, grita a claquete. A sala de cinema pinta-se de azul. É um rio. Não! É o rio nos fluxos e refluxos das marés. E os caranguejos escondem-se nos juncos.

 

No areal vê-se um enxovalho total. Uma casa pré-fabricada instalara-se ali. Que abuso! Grita a plateia. Um aglomerado de madeira protegido por fitas que proíbem o contacto de intrusos com a arte. A câmara mostra. Ali se instalou um estúdio de cinema. Um acervo de actores, actrizes, fitas, realizadores, bobinas, projectores, guiões, bandas sonoras, fotografias, ópticas... tudo a falar francês, sem acento alentejano.

 

A minha mãe chorou. Não pela praia, mas por se ver impedida, por uma fita amarela, de entrar na casa que a vira nascer. A fonte é actriz de cinema, mãe! Depois rimos. Rimos com a certeza que nenhum daqueles actores terá melhor desempenho que o meu avô.

 

Numa película a preto e branco... com sabor a mar!

 

 

Page copy protected against web site content infringement by Copyscape

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

Arquivo

  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2021
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2020
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2019
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2018
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2017
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2016
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2015
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2014
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2013
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2012
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2011
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2010
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2009
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2008
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub