Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

ponto de admiração

ponto de admiração

23
Jun22

Jacinta XX [chega um amor, para ser amor]

Paola

278971540_729815058399999_397458545620665837_n.jpg

A noite chegara sem que elas a vissem. Foi por isso que Beatriz acabou por dormir lá em casa. Beatriz era a amiga e tinha um coração enorme. Sempre escancarado. Acordou cedo. Faltou-lhe a almofada em que gostava de adormecer os sonhos. As desgraças e os sorrisos do dia. Foi à cozinha. Tirou um café da máquina que estava em cima do balcão perto da janela. E saiu para a varanda. Ela e a chávena vermelha que tinha sido comprada numa velha loja de antiguidades. As duas perdiam-se por aquelas coisas. Velhas. Usadas. Com histórias gigantescas escondidas. Às vezes, gastavam horas a adivinhá-las. E riam tanto. Porque eram, quase sempre, narrativas de rir. E tanto rir, choravam. Só para rir outra vez.

- Aqui? Já?

A surpresa quase entornou o café. Jacinta, que mal dormira, ali estava. Desassossegada e sonolenta. Acompanhada e sozinha. Naquela manhã, precisava de companhia.

- Ficas?

Beatriz ficou. Agarrada à chávena, perguntou-lhe se estava bem. Claro que não estava, mas isso pouco importava.

Jacinta enrolou-se no roupão de seda. Olhou para longe como quem olha exatamente para lá. E começou a dizer. Beatriz não se atreveu a qualquer palavra. Mesmo pequenina. Ouviu. 

Bastava uma personagem. E um espaço para que a narrativa se dissesse. Para que o tempo fosse outro. E a ação se encostasse ao rio. Até dispensava o narrador. Porque a história se dizia na primeira pessoa. Beatriz bebeu o último gole de café. Arrumou a cabeça. E olhou para longe. Como se procurasse o local onde a amiga se encontrava. Mas não chegou. Não foi capaz. Não sabia onde era. E a Jacinta não lhe indicou o caminho.

O dia mal tivera tempo de acordar e já o lago chamava por nós. E nunca um lago me doeu tanto. À sua volta, os pinheiros albergavam meia dúzia de aves. As que resistiam ao barulho das motas de água. E às sonoras gargalhadas que estavam guardadas nos cestos dos piqueniques que poisavam na relva que ficava no outro lado. Apenas uns metros de ervas. O resto era areia. Lembro-me que se ouviam os pardais, tordos e cotovias. E os melros que bebiam água na margem. Descaradamente. E a música tocava no bico dos pássaros. Ele ouvia. Eu ia tropeçando na alegria verde dos seus olhos. Pediu-me para dançar. Garantiu que aquela música não nos agasalhava. Tínhamos de ter uma só nossa. Porque merecíamos! E uma canção soou. Só nós a escutávamos. E queríamos tanto que aquela tarde fosse proibida de entardecer. Para que a noite não confundisse o dia.

O lago estendia-se por ali. Preguiçosamente, oferecia a água. As margens e o Sol. Tanto Sol. E fomos. De mão dada, entrámos na água. Arrepiámo-nos e sorrimos. Mergulhei e ele foi buscar-me com um beijo. Dois. E outros tantos. E os nossos corpos abraçaram-se numa ânsia louca de se amarem. Como se não estivesse ali ninguém. Como se nos afundássemos no momento. Eu retribuí com o meu amor todo. Com o meu medo todo. Que um espaço não se dissesse. Que o tempo não chegasse. Que a ação se afundasse no lago.

Beatriz escutava. Percebia a lágrima que escorregava pelo rosto da amiga. Enquanto o gato da imensa cauda amarela dormitava arrumado no tapete. Supostamente não conhecia a história. Supostamente.

Sabes, Beatriz, tenho tanto medo de molhar os pés. É o que sinto. Se não sentisse, serviria para alguma coisa? As gaivotas coloridas e sólidas enchiam o lago de alegria. E as pessoas tinham sorrisos gigantescos. Pareciam capazes de pedalar as suas dores como se fossem Sol.

- Ele não me telefonou ontem. Nem hoje.

- Não?

3 comentários

Comentar post

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

Arquivo

  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2021
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2020
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2019
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2018
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2017
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2016
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2015
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2014
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2013
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2012
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2011
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2010
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2009
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2008
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub