Jacinta XX [chega um amor, para ser amor]
A noite chegara sem que elas a vissem. Foi por isso que Beatriz acabou por dormir lá em casa. Beatriz era a amiga e tinha um coração enorme. Sempre escancarado. Acordou cedo. Faltou-lhe a almofada em que gostava de adormecer os sonhos. As desgraças e os sorrisos do dia. Foi à cozinha. Tirou um café da máquina que estava em cima do balcão perto da janela. E saiu para a varanda. Ela e a chávena vermelha que tinha sido comprada numa velha loja de antiguidades. As duas perdiam-se por aquelas coisas. Velhas. Usadas. Com histórias gigantescas escondidas. Às vezes, gastavam horas a adivinhá-las. E riam tanto. Porque eram, quase sempre, narrativas de rir. E tanto rir, choravam. Só para rir outra vez.
- Aqui? Já?
A surpresa quase entornou o café. Jacinta, que mal dormira, ali estava. Desassossegada e sonolenta. Acompanhada e sozinha. Naquela manhã, precisava de companhia.
- Ficas?
Beatriz ficou. Agarrada à chávena, perguntou-lhe se estava bem. Claro que não estava, mas isso pouco importava.
Jacinta enrolou-se no roupão de seda. Olhou para longe como quem olha exatamente para lá. E começou a dizer. Beatriz não se atreveu a qualquer palavra. Mesmo pequenina. Ouviu.
Bastava uma personagem. E um espaço para que a narrativa se dissesse. Para que o tempo fosse outro. E a ação se encostasse ao rio. Até dispensava o narrador. Porque a história se dizia na primeira pessoa. Beatriz bebeu o último gole de café. Arrumou a cabeça. E olhou para longe. Como se procurasse o local onde a amiga se encontrava. Mas não chegou. Não foi capaz. Não sabia onde era. E a Jacinta não lhe indicou o caminho.
O dia mal tivera tempo de acordar e já o lago chamava por nós. E nunca um lago me doeu tanto. À sua volta, os pinheiros albergavam meia dúzia de aves. As que resistiam ao barulho das motas de água. E às sonoras gargalhadas que estavam guardadas nos cestos dos piqueniques que poisavam na relva que ficava no outro lado. Apenas uns metros de ervas. O resto era areia. Lembro-me que se ouviam os pardais, tordos e cotovias. E os melros que bebiam água na margem. Descaradamente. E a música tocava no bico dos pássaros. Ele ouvia. Eu ia tropeçando na alegria verde dos seus olhos. Pediu-me para dançar. Garantiu que aquela música não nos agasalhava. Tínhamos de ter uma só nossa. Porque merecíamos! E uma canção soou. Só nós a escutávamos. E queríamos tanto que aquela tarde fosse proibida de entardecer. Para que a noite não confundisse o dia.
O lago estendia-se por ali. Preguiçosamente, oferecia a água. As margens e o Sol. Tanto Sol. E fomos. De mão dada, entrámos na água. Arrepiámo-nos e sorrimos. Mergulhei e ele foi buscar-me com um beijo. Dois. E outros tantos. E os nossos corpos abraçaram-se numa ânsia louca de se amarem. Como se não estivesse ali ninguém. Como se nos afundássemos no momento. Eu retribuí com o meu amor todo. Com o meu medo todo. Que um espaço não se dissesse. Que o tempo não chegasse. Que a ação se afundasse no lago.
Beatriz escutava. Percebia a lágrima que escorregava pelo rosto da amiga. Enquanto o gato da imensa cauda amarela dormitava arrumado no tapete. Supostamente não conhecia a história. Supostamente.
Sabes, Beatriz, tenho tanto medo de molhar os pés. É o que sinto. Se não sentisse, serviria para alguma coisa? As gaivotas coloridas e sólidas enchiam o lago de alegria. E as pessoas tinham sorrisos gigantescos. Pareciam capazes de pedalar as suas dores como se fossem Sol.
- Ele não me telefonou ontem. Nem hoje.
- Não?