Hoje é junho. E eu lembrei-me de agosto. Cálido e morno. Adormecido. Da cor da terra. Da areia que se bambeava debaixo dos pés. Da água morna e doce que corria no rio. No azul que se segurava na minha pele e que me recuso a despir. Exatamente porque não sou criança. Apenas elas conseguem libertar-se da roupa que vestem. E escolher novos modelos, novas cores. Sem arrependimentos, nem culpas. Porque ser junho é que recordei de todos os meses do ano. Dezembro também estava lá. Carregado de frios e agasalhos. Com sabores adocicados e salpicados com canela que a minha avó trazia nos dedos. Nas mãos guardava a coragem do vento e os sabores de menina. Porque é junho, fui buscar o pinheiro. Bravo. Alto, esguio e verde. Foi aí, num ramo robusto, que pendurei o balancé. Depois, balancei-me para cá e para lá. E, ainda hoje, adivinho o vento a acarinhar o meu corpo. O mesmo estonteamento. O mesmo tremor. Só que mais violento. Porque o pinheiro já não vive ali. Nem eu. Que já não sou a mesma que se balouçava à tardinha.
A cortiça é uma especialidade portuguesa. A jóia da coroa, numa terra debilitada e muito encortiçada. Ou foi, ou ainda é, e eu nem dei pela transformação. Vive-se um tempo de materiais novos. Mais sofisticados e muito inventados. A cortiça é humilde e autêntica. A cidade é postiça. Enrola-se em gostos catalogados. Espreita os escaparates e depois opta pelo estranho. É por isso que vai ao estrangeiro e aproveita modas de lá. Agora, diz-se pele de excelsa beleza e qualidade. Produz-se e perjura as origens.
A cortiça dá-se a quase tudo. Num espectáculo polissémico grandioso. No entanto, continuo a preferir o cortiço da minha avó. Porque genuíno e tinha muitas abelhas. E lembro-me da extremosa senhora, preocupada com o meu descanso nocturno, a perguntar-me se não seriam horas de ir para o cortiço. E eu ia. Até ao alvoroço da refeição da manhã. O pão, o mel, a água-mel… e o café. Ficou-me o aroma e a algazarra matinal. Do paladar já não me lembro. Adulterei-o industrialmente. E o pão que retirava de um enorme saco de pano. Admirável, mas cabeçudo. Alentejano. Fresco, porque o outro ninguém comia. Tinha a consistência da cortiça! E eu, que nunca provara o cortiço estranhava a relação. O pão encortiçado? Só acreditei porque a minha avó era entendida no assunto.
Hoje, escrevo ressacada, com a língua encortiçada pela ausência de vontade, os olhos enfunados pela falta de sossego, as mãos a vacilarem pela fraqueza assumida, os pés magoados das fainas quotidianas, o olhar ensombrado pelo brilho pardacento de pressas mesquinhas, o pensamento travado por excessos pretendidos e não concretizados.
Não tenho ideias, não sei escrever. Estou encortiçada e, tal como a cortiça, gostava de ser exportada. Não me apete nada. O dia rola fastidiosamente cinzento. E nada é pouco. Os sobreiros morrem de pé. E sempre que um arde, eu sinto-me mais pobre. Roubaram-me o sobreiro que me pegava ao colo. Baloiçava até o ritmo acalmar e todos os dias, pela manhã, chamava por mim. Até acabar...
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]