No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu era feliz e ninguém estava morto. Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
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O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa, Pondo grelado nas paredes... O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas), O que eu sou hoje é terem vendido a casa, É terem morrido todos, É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos... (…)
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
Foi há seis anos que nasceu um setembro tranquilo. Chegou com um contentamento azul nos braços. Um choro ténue, uma lágrima alegre e na noite abriu-se uma excecional clareira de luz.
Hoje, que setembro torna, há um recomeço que se diz em poucas palavras. Frases simples que contam histórias sobre o tempo. E o desentendimento por tantos relógios.
Agora diz que já é tempo de ir para a escola. Jura acordar cedo e não fazer asneiras. Vestir-se sozinho. Só não sabe se volta com as calças limpas. Tem que brincar com a namorada. Jogar à bola e marcar um golo. Procurar a dúvida no chão.
Eu disse-lhe para se apressar não fosse a escola acabar. Ou deixar de gostar.
Em Abril__________ rasguei o ventre da minha mãe ___________ surgi nua de despudores ___________ para me saber no depois __________ aconchegada em lençóis de espuma que o rio bordou para mim __________ emergi de ternas tormentas __________________ amparou-me em mãos doces _________________ em Abril __________ ainda faltavam duas horas para o dia ser outro ___________ em Aprilis ilimitado no ressurgimento __________________ abri a boca a safras de admirações _____________ chorei alaridos de vida ____________ chegados ao outro lado da cidade ____________nasci em Abril_________ quase ao pé do rio _________ não aconteceu nada no mundo quando eu nasci _________ tão-somente o sorriso dela desviou a Lua por estar a brilhar ______________ nasci em Abril __________ num luzente mês de carinhosas brisas espalhadas ____________________ sorria pelo Sul _____________ pelas papoilas escarlate _____________ com as azedas amarelas a baloiçar______________hoje, não celebro o dia __________ antes a origem ____________ que naufragou antes do Inverno chegar_______________ porque navego por aqui _______ redemoinhando à tona da grandiosidade que me gerou __________ no seu rio ___________ em Abril.
Hoje, cumprem-se dois anos da tua vida. Naquele dia, já à noitinha, as flores pintaram-se de cores admiráveis. Os pássaros entoaram cantigas de embalar. Ainda mais harmoniosas. Também mais inolvidáveis. Magníficos acordes. Excelsas consonâncias. O sol brilhou com nova pujança. E nessa noite, as estrelas sorriram. Choraram lágrimas de rir. E silenciaram-se porque as palavras emudeceram no sublime momento em que te vi. Nenhuma fazia sentido. A comoção espalhou-se pelo meu corpo com a certeza de te ter ali.
Sabes, Vénus é a deusa do Amor e da Beleza. E que importância tem, se tu és vida e corpo que eu posso beijar? O seu nome tem epítetos forjados no mito. Nada comparável com o teu, mesmo que ignorado por Camões. O teu canta a aglutinação de santo e lago. Pressagia que suplantarás os escolhos da existência. O teu nome tem orgulhos e audácias. Arrojado. E com ele cumprirás êxitos e paixões. E o teu epíteto já é adorado. O templo, em que vives, não tem a mesma grandiosidade que o da deusa-mulher. Não faz mal. O mito foi publicado no papel. Alegórico e simbólico. Moldou o sagrado de devoções que já não existem. Tu és.O olharde Vénus é vago e perdido na tela. Os seus olhos, quase estrábicos, foram um ideal de beleza. Os teus têm mar. E céu. E o deslumbramento que o admirável proporciona. E entre o Renascimento e o Nascimento, eu escolho-te a ti. Na epopeia camoniana, é deusa-madrinha dos heróis. lusos. Um ornato secundário. Mitológico. Porém, o maravilhoso és tu.
Apele de Vénus é da cor do marfim, com confusão do branco, amarelado e rósea. É excessivamente perfeita. A tua tem brilho natural. Sem amálgama de tintas. Ocabelo de Vénus alarga-se e ondula pelo corpo, aprisionando-se na tela de Botticelli. O teu é Sol e luz e brilho. Naturalmente, vida. O rostomostra-se eternamente jovem. Que importância tem, se mentir é feio? A boca perdurará fechada. E tu choras e ris e dizes palavras ainda incompreensíveis. Olhos claros? Ela que olhe para ti. Ostenta uma fisionomia de melífera melancolia. A brandura da feição insinua uma benignidade moral que purifica a deusa pagã. Não te importes, meu menino. Às vezes, tu és assim. Mas muito mais. Ela não ri, nem chora. Coitada! Nem há notícia de ter gargalhado. A atitude é de estátua envelhecida. Nada que se compare com a frescura das correrias que fazes no jardim. Etambém tu representasa natureza plural do amor. Quanto às qualidades espirituais e humanas? Estimo-as superiores. Sim?
A notícia surge imperativa. Fechada para obras a maternidade do hospital. Há coisas que ocorrem quando já deviam ter acontecido. Ao menos isso, nesta terra que vai consumindo a memória com as vidas privadas publicads nos jornais. Está convencida que a volátil é mais moderna. E imediata e temporária. Aldrabices!
Admirável memória. Fantástica já que não virtual. Extraordinária. Coabita com o corpo e vive também. E as chagas corporais saram depressa. Não têm qualquer importância. Poder conservar e reproduzir as ideias, imagens e conhecimentos anteriormente vividos. Ser capaz de reproduzir gestos. E palavras. E gemidos. E a dor. Tão sublime. A mais grandiosa de todas as dores que o corpo tem. O corpo chora. A alma dá sonoras gargalhadas e as lágrimas sabem a regozijo. O corpo cumpre o ciclo da natureza. Reconstrói-se. A alma continua grávida de ostentação. E sorri desvendando o mistério.
Lembro-me exactamente de tudo. Da chegada atribulada. Dos temores de um parto fórceps, como se a tenaz não significasse a vontade de ser. Sem esquecer que parir e nascer são sinónimos. Admirável momento. E para trás estão vinte e quatro anos. Desperto de um sono que se encarregou dos preparativos. Por isso profundo, para que eu não gemesse. Depois acordou e segredou-me ao ouvido:
- Agora é a tua vez!
Eu fiz tudo direitinho para não estragar o menino. Todos contribuíram. E exactamente às sete horas, de um domingo quente de Julho, ele chorou. E o espaço cansado e pardacento coloriu-se com gladíolos de todas as cores. Lembro-me particularmente dos vermelhos.
Vinte e quatro anos depois, o sítio onde tu nasceste escondeu-se para obras. E num admirável acaso genético, não sabes palavras para descrever o que sentes. O teu filho duplica-te e persiste na vida que há em ti. A tua memória tem mais informação para guardar. E proteger. E nutrir. E amar.
Que o céu seja o limite de vida para os dois.Guarda esse dia em memória florida e estupidamente longa. E quando a sala reabrir, adorna-a com novas flores. Os gladíolos vermelhos exigem sempre água...
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]