As despedidas são sempre tristes e esta não era excepção.
As férias estavam no fim, as malas feitas, a casa arrumada, o carro atafulhado de tralha. É impressionante o volume de memórias e lágrimas não derramadas que se consegue arrumar no porta-bagagens de um Toyota Corolla!
Antes de partirmos rumo a casa, um último adeus à praia dos meus afetos.
O dia despedia-se da luz. O céu cobria-se de farripas de algodão doce que dançavam embaladas pela suave e amena brisa, num festival de cores. E, de repente, desenhou-se um arco-íris do tamanho do céu. Por cima de mim, o firmamento era de um azul anilado, passando por um tom verde amarelado para terminar num laranja avermelhado que se estendia até onde a vista já não conseguia ver. E eu passava por baixo, na alegria das cores. Escondida sorrateiramente atrás das nuvens, uma estrela abria os seus braços para mim, aconchegando-me no seu colo e atrasando a partida. Aquele era um lugar que existia a prazo e, por isso, havia que prolongá-lo no olhar.
Ao fundo, recortado na linha do horizonte, o monte brotava suavemente, como se um pintor tivesse tido uma doce perturbação e o delicado pincel lhe tivesse escapado momentaneamente das mãos. E o lugar surgia, concebido por um ser superior, numa fresca representação bíblica.
Depois, só tons de azul. Atalhados por uma estrada de um amarelo muito cálido que o Sol abrira só para mim, corri até ao areal que percorri descalça. Uma suave espuma vinha beijar-me os pés. Falava baixinho. Num murmúrio delicioso, um lamento desesperado que me invadia e perturbava, mas que quero reter na memória.
No areal, os botes sobreviviam despidos de brilhos de outros tempos. Era desolador vê-los assim, vazios do seu esplendor, da algazarra das crianças, do ensurdecedor barulho das agulhas de croché da avó, das conversas das “tias”. Do balde negro que chegava com chocos, lulas e robalos.
Segurei-me àquele cheiro. Não era um cheiro qualquer, de uma qualquer praia, de um qualquer rio. É o meu bálsamo. Inconfundível. Reconhecê-lo-ia em qualquer lugar e é dele que eu sinto mais falta quando não estou ali.
É um misto de mar, com cobertura de algas e recheio de espuma, mais ou menos como as lulas recheadas que a minha mãe servia no dia de ano novo. Porque um poema não para no fim. Porque um verdadeiro poema vive eternamente.
O relógio já não é novo e falta-lhe a paciência para as horas. Queixa-se das noites mal dormidas. Do barulho cadenciado e consecutivo. Para além disso, confessa, os braços giram cansaços e afrontas. Outrora, e com toda a dedicação, eu dava corda ao relógio. Acertava-lhe os ponteiros com o ritmo da melodia.
Agora, exige o tempo. Ao relógio não bastam as horas. Quer o mesmo tempo que eu guardo nas mãos. Digo-lhe que não. Que o mastigo o tempo com o sol todos os dias ao acordar. E o relógio persiste num continuado sintético. Nos recursos disponíveis. Ignora a vida que lhe dou. Que lhe tiro.
Roubou-me a areia. Cortou-me o vento no mesmo instante em que rasgou os anos. Juntou os dias e perdeu-se numa amálgama de momentos. É assim que o meu tempo chega de barco. Eu vou para lá com uma vontade aberta de chegar, desnudada de horários estreitados. Entro na água e o meu corpo leva-me numa inesperada maré de azul sem que a ordem seja restabelecida.
Na parede da sala, o relógio dava horas que se intrometiam nas paredes da casa. Sem saber que eu vou buscar tempo todas as manhãs. No meu horizonte não há horas, antes o relógio do meu avô. Lindo, com uma corrente dourada e comprida que se agarrava à casa do colete. Na tampa, os motivos de caça. Uma lebre escondia-se no colo daquele bolso pequenino.
Na parede da sala, o relógio calou a voz, enquanto os ponteiros marcam o tempo que me apetece. Que eu sei e me aquece. Porque em cada relógio mora um tempo diferente.
- Apeteceu-me enfiar os pés na torneira... me auto-arejar... chamar o mar… sentar-me no banco e devorar o ar fresco da noite... molhar os pulsos, os dedos, o rosto e mais o resto... desaguar no frigorífico... ser urso polar com gelo... tomar banho de nevoeiro... saltar para o rio de roupa e tudo... Deus do céu, que calor!!!! Credo! Sus! Grrrr!
- Era necessário tanto barulho?
- Er... Ahn ... Hã? Huh? hein?
- Não foi só um número que mudou?
- Hmmm hum...
- Foi!
- He! he! he! eh! eh! rê! rê! ... Tanto ruído por causa de um nove!!
Era uma vez um menino muito pobre que vivia numa aldeia tão pobre quanto ele. Até o riacho, onde chapinhava no Verão, morria à sede com água pelo tornozelo. E ambos agonizavam nas tormentas que calavam. E choravam a sorte, empoleirados numa pedra cinzenta.
O menino tiritava de frio, ao mesmo tempo que arremessava pedrinhas na esperança de ouvir onomatopeias cantantes. Foram gestos vãos. Esforços falhados para amornar as mãos. E de repente, uma pedrita muito afável interpelou o rapaz:
- Três desejos, apenas três… Queres?
- Tu? Disfarçada de génio? E o Aladino?
- Se não queres, não queiras! Depois, não grites…
- Concedes-me três desejos, é?
- Irra! Não disse já que sim?
- Uma casa! Tens?
- Certo, meu petiz.
- Dinheiro? Preciso de algum…
- É normal… E qual é o teu último desejo?
Fez-se um silêncio tão grande que nem as rãs se atreviam a coaxar…
- Uma família! Não precisa de ser muito numerosa… apenas que chegue para o ano inteiro. Mas tem que ter um irmão!
- Bem pensado, sim senhor! Tenho que me ir embora… Gostei do tempinho que estive contigo, rapaz.
E desapareceu num silêncio tão excessivo que se ouviu a pedra a rolar. E o menino pensou que tinha sido engano… que nem acreditava em milagres... mas que podia desejar.
A utopia é inatingível, se fosse certeza não era utopia! Mas não deixa de ser o princípio da esperança...
O verbo foi sugestão do Perfume, a história foi escrita pelo D.Q. , um menino também... Só a aproveitei!
Não sei se quero. Se calhar até quero e não sei… Provavelmente não. Ou posso e não sou capaz? Sinto-me embrulhada em protótipos culturais com lacinhos tão banais. Que seja mais um, que depois venha outro… que seja! Eu sou a soma de todos os anos que carrego, na recusa de ser uma simples adição.
Ano Novo,Vida Nova?
Não sei se será… Talvez com mais silêncio… A minha vida não será nova porque não deitarei fora o tempo que já agarrei. E o tempo fluirá pelas palavras que direi. Espontaneamente. Adornar-se-á nas figuras de estilo que inventarei... nas sílabas que suspirarei... na busca incessante de eufemismos que urdirei para calar desconcertos hiperbólicos. Teimoso, o tempo, repetir-se-á em soantes paralelismos anafóricos. Todas as manhãs, apesar de mim.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]