Agosto despede-se. E chora. Faz birra e esconde o Sol. E as nuvens desenham no céu sonhos coloridos de crianças. Descansos e cansaços saudáveis. Preguiças e bocejos admiráveis.
O mar pinta-se de azul-marinho. Ali escuro. Acolá transparente. Claro. Admirável e barulhento. Picado, afirmavam. Ponteado de cristas brancas. Agitadas e nervosas. Agosto também. Para a semana é Setembro. A praia está só. O mar indómito.A areia penteada. Restos de chapéus de sol olham para o mar e carpem a desgraça.Há muito que Agosto não tinha um dia assim. Os corpos ávidos de sol são fustigados. E escondem-se em panos alugados.O deserto começava a estar ali. O vento guincha fúrias contidas. Hipocrisias caladas. Afectos traídos. Vaidades assumidas. Tão forte e tão frio. E o vento cospe nos rostos a areia que já não quer. E desliza num mar de queixumes, na certeza que as forças da natureza são incontroláveis.
E o vento bate à porta do meu sossego. Vai-te daqui, ordenou descontrolado. Não entendi a razão. Insurgi-me com os modos. Não grites comigo, disse com autoridade. E o vento lastimava que assim tivesse acontecido. E sussurrou-me sem alarido que não estava a gritar. Foi só um guincho. De uma mão cheia de areia.
O sol anunciara a chegada do alvorecer. Com ele vieram os pardais. Sem pedido formal, caligrafado em folha azul de vinte e cinco linhas, entrou pela janela. Acariciou, primeiro. Beijou muito de mansinho. Amou ao amanhecer. Os seus raios luminosos afagaram rostos. Aqueceram os corpos. Aureolaram vidas.
Os braços espreguiçaram-se. As bocas murmuram sabores a café. Admirável! Da cafeteira azul-esmalte que aguardava ao lado dos tições ateados bem cedinho. Devagarinho, não fossem eles acordar. Uns após o outro, todos cessaram o sono. Nas camas, os lençóis, brancos alindados por rendas urdidas ao longo dos anos, declararam-se ao sol. Contavam-lhe os sonhos que a noite engrandeceu. Traidores! Nas camas de ferro. Brancas. Só uma era azul com maçanetas douradas. Todas as semanas eram limpas. O brilho fazia-se com jornais.
À mesa, na cozinha aquecida pelo lume que crepitava na chaminé, antecipava-se o almoço. Os planos estendiam-se em cima da toalha às flores, de acordo com o apetite de cada um. Era sempre assim, em Agosto. O resto ocorria ao intervalo do que não fora delineado. E tanto que acontecia nos instantes que remanesciam dos propósitos matinais. Ditosa terra. Venturoso rio. Ambos subiam ao cimo das vontades libertadas por nós. A qualquer momento, generosamente.
- Vou aos robalos.
- Vou contigo.
- Só vais empatar.
- Não vou!
- Teimosa!
- Pois sou!
E fui. Comigo ele cedia sempre. Descemos a duna com um balde na mão. Progredíamos em silêncio e sentimos o peso dos robalos. Na outra mão umas galochas de borracha. Altas, quase até às virilhas, por causa da água. No balde também seguiam umas sapatilhas estranhas. Um apoio em madeira de trinta ou quarenta centímetros, com uma alça de corda ou plástico, não me lembro com precisão. Uma coisa esquisita. Um artifício pesqueiro. Como uma chinela de verão. Uma base e uma só tira. Mas muito grande, a base. Uma invenção que coibia os pés de se atascarem no lodo. Garanto que não foi fácil. Andar com aquilo calçado correspondia a não saber andar. O que para mim constituía um retrocesso intolerável. Pés desorientados. Passos perdidos. Corpo desamparado. Ele tinha razão. Eu só empatava. Todavia nunca lho disse. Não fosse matutar que tinha razão. Mas fui!
Entrámos no bote. Pequenino. Naquele dia o seu percurso fora alterado. Ele era a ponte entre a praia e a traineira. Uma embarcação de pesca, principalmente de arrasto. As trainas, grandes redes para aprisionar sardinhas, deram-lhe o sobrenome. A traineira era presunçosa e corpulenta. Vestia-se de azul. Não descia ao areal. Por uma questão de hierarquia. Isso era trabalho de bote. Ela baloiçava-se beijada pelo vento. Acariciada pelas ondas. Entre o rio e o céu. Azuis como ela. E ele não se importava.
- Posso remar?
- Não sabes.
- Sei!
E remei. Ele esquecera-se que me havia ensinado. Tantas coisas que ele me ensinou! Algumas já não sei e tenho pena.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]