Transversalidade dos afectos ou promiscuidade familiar
Nos Contos Populares multiplicam-se as personagens de encantos e desencantos. Todas com engenho e arte. Com ensinamentos também, ou não fosse a sabedoria popular um recurso admirável do conhecimento. Na memória colectiva da gente, estende-se um património afectivo admirável. E a generosidade é tão grande, que os fazem correr de mão em mão. Intrigas simples, mas nem por isso menos corrosivas e acutilantes. Cada história sabia a viagens maravilhosas ao mundo da fantasia, de mão dada com os avós. E que bem que elas faziam! Alongavam abraços. Partilhavam afectos. Excitavam as gargalhadas a rir, sempre que se cumpria o arrojo de lhes acrescentar um ponto. Era a imaginação a espreguiçar-se e a criatividade a encostar-se no devaneio.
A terra dos contos é órfã de autoria. No entanto, não consta que alguém tivesse apresentado queixa por ter sido plagiado. E como são tantos, os contos, cada um de nós tem o seu. Eu tenho vários. Uns são maravilhosos de encantar. Outros muito mais divertidos. Gosto daqueles que têm animais. E até dos religiosos e morais. E a delícia dos que tanto se esforçam para justificar o lugar! E há sempre os que dão ares de superioridade, com um exemplo na ponta da língua.
Trouxeram bruxas e fadas. Príncipes e sapos. Princesas e madrastas. Gatos com botas e cães descalços. Gatas domésticas e meninas friorentas. Capuchos coloridos e padres comilões. Heróis cavaleiros, vítimas inocentes, vilões e fanfarrões. Cobardias e mentiras. Logros e lealdades. Narizes empolados e rostos torcidos. Contributos notáveis de cada personagem para a que a história se perpetue. Pequenina, que a memória já não é grande coisa.
A madrasta da pobre Gata Borralheira é uma das personagens mais odiadas dos contos de encantar. A sua crueldade vornou-a famosa. E eu dou por mim a pensar que as madrastas não são tão malvadas assim , as mães é que são extraordinárias. Contudo, não me lembro de contos com padrastos ruins. Nem bonzinhos. Os contos são invenção masculina, sem dúvida.
À saída da escola, o conto não é ficção. E o rapaz muito indignado exclama:
- Mãe, o João disse-me que tinha um padrasto!
- É porque tem, João.
- Mãe, eu também tenho um, não tenho?
- Sim… o pai que a mãe te arranjou…
- Ó mãe, esse não é o meu pai! É só padrasto.
- E o teu pai, sabes dele?
Mais não ouvi. Fiquei sem saber se era dos bons ou dos outros. Se o padastro é pai ou se o pai é que é padrasto. Nem se as personagens dos contos populares vão ter outro enquadramento.
Vou com pressa. Ao sábado é dia de comer arroz-doce. Ora se D. Sebastião faz parte do imaginário português, por que razão o arroz-doce não pode fazer do meu? Arrogo-me o direito de compensar a míngua semanal de afectos açucarados. Reconheço-o pelo cheiro.
Admirável gulodice. De aroma e sabor. Flexível na forma de cozinhar. Prepara-se na tolerância dos usos e costumes da gente. Sempre com uma boa dose de prazer.
1 Chávena de chá de gargalhadas
1 Pitada de coscuvilhice
1 Vagem de lágrimas
2 Litros de benéfica amizade
1 Chávena de chá de idoneidade
1 Pauzinho de desatino
No café da Dona Perpétua, sentar na mesa mais afastada do balcão. Por causa dos atropelos matinais. Há quem vá para ali tomar o pequeno-almoço. Juntar um pouco de coscuvilhice, apenas a cobrir o tampo e aguçar o engenho da oratória, e uma pitada de lágrimas de rir. Levar a conversa moderada, mas mexendo sempre. Com as duas mãos. Energicamente. Sempre que necessário, com os dedos também. Para contar. Para indicar.
Juntar a amizade, sem lavar, e levar ao fogo das palavras, mexendo sempre, sem deixar secar completamente a boa disposição. Enquanto mexe, não deixe de cumprimentar quem chega à mesa. Ou quem passa.
Entretanto, convém ir pondo os projectos a aquecer. É conveniente mudar local. De preferência mais arejado. Sempre de acordo com o que vai fazer a seguir.
Quando o assunto começar a secar, juntar outro bem quente e aos poucos, gargalhando sempre. Acrescente uma pitada de bisbilhotice e um pouco de vida pessoal.
A prosa deve ir sempre fervendo em lume brando. À medida que vai secando, junta-se mais, em pequenas quantidades, sem deixar de mexer. Sempre a conversar.
Quando terminar de juntar as palavras, acrescente as compras e os desatinos. Mexer e deixar ferver. No final, passar tudo por planos futuros. Há que preparar a semana com antecedência.
O processo de cozedura demora cerca de 5 horas, às vezes 6. Ou 7. Até pode durar o dia todo. Tudo depende da qualidade dos ingredientes. E da vontade de comer.
Aproveite para almoçar. De preferência grelhados. E muita salada. Verdes de tonalidades várias. Combinam com a cor da canela. Aproveite para apurar a conversa e cimentar a amizade.
É preciso paciência, mas vale a pena! Serve-se frio, morno ou quente. Depende dos gostos. E do apetite. Em taças, pires ou travessas. Depende de quem come. E sempre, mas sempre muito bem adornado com risos, gargalhadas e cumplicidades com cheiro a canela.
Se se esquecer de algum dos ingredientes, não desespere. Recorra ao telefone. Acrescente o que estiver em falta. E continue a mexer...
Um sábado gostoso. Passado como quem saboreia os acepipes que, na mesa, alimentam a fome que se senta à espera de mais. Um menu de colesterol para quem come. E comemos todos. Esta história das refeições terem preços acessíveis e depois colocarem à frente dos nossos olhos ou da boca, o que é bem pior, aquelas coisas fantásticas não dá. Desde as azeitonas e manteiga ao queijo, do presunto à linguiça assada, morcela e outros que tais, torresmos ou gambas à la qualquer coisa, de preferência em francês que é para dar um tom distinto ao repasto, alheira de caça, presunto com melão e tudo o mais que nos passar pela cabeça, vale tudo neste jogo de sedução alimentar. E mais o vinho daqui e dali e também do estrangeiro. E depois? Encomenda-se o quê, quando já se comeu o que havia em cima da mesa? Nem valia a pena perguntar. Mas lá vem o empregado muito solícito, simpático e, na maioria das vezes, barrigudo e com bigode enrodilhado nas pontas. A encomenda faz-se no meio de estou cheio, já não posso mais e coisas assim. Todavia pode-se. E come-se e bebe-se e come-se. Muito bem. Tão bem que se volta na primeira oportunidade que surja. E recomenda-se. E eles também vão e comem. E recomendam. E voltam.
Portugal é um país onde se come bem. Sem dúvida. Portugal é um país onde a obesidade é um dos principais agentes de risco para o aumento de outras doenças que lesam a saúde. Hipertensão, diabetes, colesterol alto e acidentes vasculares cerebrais sucedem-se. A estatísca confirma a enfermidade. Portugal é culpado de estar doente. E continua a servir admiráveis iguarias à mesa da gente. É verdade que estes hábitos vêm de outros tempos. Logo com o nosso primeiro. D. Afonso Henriques era muito forte e alto, caso pouco comum na época. Obviamente devido a uma excelente alimentação. Só pode. Não é por acaso que as desavenças com a mãe deram no que deram. E o Capuchinho Vermelho? E a boca enorme do lobo que queria comer a menina? E os pitéus que a mãe colocara na cesta para a avó? Enfim, não há mesmo cura para esta gula colectiva. Este gostinho transmite-se por direito de sucessão. Nunca mais nos livramos do maldito do colesterol.
Por causa do colesterol, e porque gosto, prescindi das entradas. Comi muita salada, fruta e peixe. E bebi água, claro. Não vá o diabo tecê-las. Não me consta que o dito tenha morrido de ataque cardíaco.
E antes e depois e durante, passeámos palavras ao sabor do vento e do sol. E da fome. E deambulámos à beira-rio. Sentimos a brisa. O fresco. Espreitámos o horizonte. Entre nós e o Sol eas nuvensexistia o ar!E rimos até as gargalhadas atrapalharem as lágrimas. É que pela manhã não renunciámos à tigelinha de arroz-doce. Com canela. É só ao sábado…
Hoje nada de admirar. O ponto de exclamação não se admirou. De nada! Rien de rien ! Ao sábado não há matéria de facto. É um gasto com nadas. Temos a hora das compras. Todas as que sobram são de paleio intervaladas com um café, dois... um arroz-doce. Este sim, é obrigatório. O arroz da Dona Perpétua é fantástico. Divino. Cremoso. Delicioso. Tem canela. Tem dias! Que é como quem diz tem sábados. Não há sábado sem o arroz-doce. Aquele, porque outro não serve.
Por vezes, prescindimos do Jumbo. Portugal tens outros caminhos... Do arroz-doce é que não. Tudo o resto acontece depois, ao sábado.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]