Sempre tive para mim que nascer é um verbo admirável. Só nascer. Às vezes renascer. Mas poucas, porque não acredito nessas coisas. Entre o nascer e o morrer está a vida. Que é um percurso. Curto, sempre. Quando longo é insuficiente, porque a morte chega sempre adiantada.
Nasce o Sol. Nasci eu. Nascem as papoilas no campo. E na pernada do sobreiro há um ninho. Estou a ouvir os passarinhos. Nascem palavras das discussões. E são demais. Dizem o que querem. Arrependem-se depois. E nascem romances grandiosos. E poemas. Por vezes, nascem amizades sublimes. Para a vida. Também na morte. E de estremecimentos transpirados. De indecisões contidas nascem viçosas cartas de afectos declarados. Quem sabe se também nasce o amor. E dos casulos nascem as borboletas. Bichos-da-seda que só pensam em comer e comer. Nas amoreiras as folhas nascem verdes e as amoras negras. E da rota da seda nascem histórias e lendas. Verdades e mentiras. E riquezas. E se tudo acontece deste modo, está bem assim. Certo é, certo está. Nascem desejos no corpo e arrependimentos nas mãos. Na boca nascem palavras de emoção. No canteiro do jardim, nascem rosas amarelas. E alfazemas disfarçadas de alecrim. Um ribeirinho nasceu ali. Tão pequenino. E corre, corre, corre. E já muito extenuado enlaçou-se no rio e, os dois, correram até lá chegar. E, deste modo, nasceu o mar.
Nascem homens e mulheres. Nasce a esperança. E há muitos anos nasceu o Menino Jesus. Fez-se homem. E nasceu a crença. E nasceram atritos. E injustiças e guerras. Eu nasci tranquilamente no convento. Que nasceu hospital. Numa terra que nasceu azul. Por causa do rio que se despejou no mar. Depois saí. E nasci assim.
A natalidade é desgosto tremendo. As aves perdem as árvores. Queimadas. Coibidas no jardim. As flores não olham para os montes e vales. A paisagem é urbana. Naturalmente! E os meninos e meninas não têm espaço para aparecer. E o país lamenta o que tem. Que em vez de nascer, envelhecem e morrem a seguir.
E fiquei a saber o verdadeiro drama da carência. Disse na televisão que é fonte credível. Com imagem e som. A cores. Garantia a senhora que isto agora é uma maçada. Que já não se fazem meninos como antigamente. Que as consequências são avassaladoras, acrescentava. Muito versada no assunto. É que sem meninos, os jogadores de futebol acabam.
E percebi que o meu clube não pode fazer milgares. E é forçado a procurar jogadores no lado de lá. E acolá. E viva la Espanha! A senhora fez a sua parte? Eu fiz a minha. Dois rapazes. Apenas errei nos nomes. Ninguém nasce perfeito!
Os verbos constituem uma classe de palavras. Talvez a mais desinquieta. Porque desempenho. Vocábulos mandões. Déspotas das vontades cada vez mais encurtadas. Afectuosos nos prazeres que se vão inventando. Raramente. E aparecem com os tempos todos. O que só dá confusão. Ontem comunicaram que sim. Hoje logo se vê. Amanhã é outro dia. Anacrónicas irresoluções. E quando não têm que fazer, inventam. Se eu fosse um animal seria uma girafa. Mas não sou. Nem tenho pernas para correr. E a hipótese é uma certeza. E já fartos de tanto danar, unem-se para semear a ordem. E mandam. Muito. E às vezes não se percebem as ordenanças. Dizem-se imperadores de domínios já extintos. E mandam. E volta o reino dos novos imperadores. E Júlio César, que não era aparvoado, usou a força em seu favor. A queda não demorou. Diz-se que por falta de escravos para uso de mão-de-obra em todo o império. Se não fosse o imperativo nada disto teria acontecido. Nem teríamos Astérix e Obélix. E pior do que tudo, Idéfix. E numa cilada bem ajeitada, os verbos aliam-se aos pronomes. Os pessoais. Eu decreto. Tu fazes. E nós? Também não somos gente? Eles dizem que sim. Mas que isso não tem importância nenhuma. Que já era assim no tempo dos imperadores. E há-de continuar a ser. Afirmações convictas de quem pode. E refilam alguns que assim não pode ser. Era só o que faltava. Em vez de agir, só se reage. O melhor é mesmo obedecer, alertam outros. E que se Júlio César criou o ano bissexto é porque precisava de mais um dia para despachar.
E neste sábado cinzento de final de Verão, o Inverno ensombra o céu. As nuvens ganham contornos indecifráveis. Os rumores amplificam-se. A multidão carrega medos e desconsolos. Por isso, não vê que a Primavera chega a seguir. Mesmo que veja, não crê. Corrompe-se o sonho. Como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso. E espero. Mesmo que tudo acinzentem.
Porque comer é um verbo, comi o arroz-doce do sábado. Na Dona Perpétua que não percebe nada de verbos, nem de tempos verbais. E não tem cão. Mas se tivesse, ela mandava e ele obedecia. Com toda a certeza!
E se eu tiver que chamar Asterisco e Obelisco, chamarei. Nada direi, apesar de convicta que o respeito pela verdade já tem outra avaliação. E reafirmarei que Astérix e Obélix é que está bem. Baixinho. Para ninguém ouvir.
Quem quer, quem quer, casar com a Carochinha que é vaidosa mas bonitinha? Carochinha sabe que à janela pode voar. E que pela janela entram sonhos. E de imediato, uma enfiada de desajustados machos se apruma. Ninguém serve. Nem o burro, por ter feia voz. A razão pela qual as vozes de burro não chegam ao céu? Bonitinha vá que não vá. Mas Carocha? A minha tia Isaura vive entre o rio e o mar. Pelo meio tem a terra. A pele da minha tia tisnou porque o Sol a matiza todas as manhãs. A viuvez traja-a de negro. É por isso que lhe chamam Carocha. E ela abomina. Ri e esbraceja ao mesmo tempo que grita que não pertence a uma família que desconhece. Cujo nome nem consegue articular por tão complicado. Ninguém repara que a pele da minha tia Isaura é uma couraça que lhe permite viver em harmonia com o espaço. E assim poder recusar epítetos inóspitos.
E os insectos não falam. E muito menos de casamentos. De revistas rosadas e muitos vestidos costurados com glamour. De facto, é bem bonitinha. Elegante no desfraldar das suas asitas. Estonteante nos movimentos arredondados. Mas vaidosa. O que não lhe fica muito bem, diz-se. Ser vaidoso é bom. A vaidade alimenta-se de razões e causas. Sem elas não existiria. De orgulhos e admirações. De fascínios e afeições. A Carochinha também. E o bicho não é um pavão. Que acumula nas penas excessos de presunção. Depois, desfila na capoeira como num palco vermelho. E sonha-se beleza aclamada. Sem saber que a vaidade não se diz sobranceria. Nem pisadelas. O galináceo de melodiosa plumagem não leu Camões. Nem sabe ler, o pobre. Mas é emproado. Se soubesse descobria uma falsa e enganadora satisfação. Um fraudulento gosto. E o coitado nem percebe a fama. Outros tempos. A Carochinha sabe. Que anda de livro em livro. De boca em boca e continua à janela. E foi o desgraçado do João, feio que nem um rato, que disse que sim. Impiedades da natureza. É certo e sabido que os dois nunca se iriam entender. O fracasso impôs-se de imediato. E antes que o divórcio sobreviesse, o roedor desprevenido desapareceu da história. Horripilante final. Mas tinha que ser. A adversidade solucionou-se no caldeirão. E a minha avó contava a história da pobre Carochinha que casou com o João Ratão. Vaidosa por sabê-la de cor. Vaidosa porque eu a escutava. Vaidosa por não perceber que a infeliz barata foi rata depois do casamento. Vaidosa por não saber que a vaidade é um bem congénito. Que em equilíbrio é saudável. Para o corpo e para a mente. O rato não sabia. Foi castigado. Excessivo trambolhão.
A Carochinha chorou. Lágrimas que registou e enviou para o pai que estava em Lisboa. Sem saber ler nem escrever. Mas soube que ele não a leu. Nunca recebeu a confirmação de leitura. E a Carochinha chora à janela. Quem quer, quem quer, ajudar Carochinha que é apenas viuvinha? Ninguém lhe prestou auxílio. Apenas passou um jovem que olhou para ela e foi-se embora. E ao serão, a minha tia Isaura conta, a história do João Ratão. Diz que o infernal episódio até foi merecido. Que no caldeirão ferveram a vaidade, a imprudência e a gulodice. Acrescenta que a violência da história é real, todavia normal. Porque o João é um pequeno mamífero roedor da família dos murídeos. A Carochinha um insecto coleóptero. As pessoas é que são pessoas. E uma história infantil é só isso. Mais nada. E eu digo-lhe que não me parece bem que o desastrado do rato tenha tido uma morte tão horrenda. Ela sorriu e foi deitar-se. Muito tranquila. E ordenou que eu dormisse também.
É uma banalidade apregoar o renascimento das tradições. Porque pilares culturais que urge manter de pé. O tempo escasseia e o melhor é nada pensar. É comum dizer-se que o presente é espaço de confluência de pretéritos perfeitos e imperfeitos. De condicionais também. É uma vulgaridade recorrer a tempos conjuntivos para que certifiquem admirações e desejos. Sentimentos emocionados. A dúvida, a espera, o desejo, a esperança que queremos presente e futura. Anda-se com a cabeça no amanhã. Só que o corpo carrega as marcas de ontem. Caminham de mão dada. Ente ambos o hoje.
É uma tolice reclamar apreço pelo ontem quando os olhos estão no futuro. E os ouvidos nunca ouviram falar nele. São jovens e os adultos já se esqueceram. E quem tem culpa que Egas Moniz defendesse o valor da palavra com uma corda ao pescoço? Anacronias desajustadas. Os jovens não têm pressa e a memória mede-se em megas e gigas. Lá fora, há a rua. Só que sem passado não se edifica um futuro sólido.
É despropositado repisar que a obesidade é um mal. As pizzas são deliciosas e os hambúrgueres também. As batatas fritas têm queijo. Presunto e mau colesterol. O tempo esconde-se. Escasseia. E as latas com abertura fácil respondem à pergunta o que há para o jantar. Simplicidades com efeitos perversos.
É, portanto, inútil reafirmar a importância de tradições alimentares. De nada serve a chamada dieta mediterrânea. Essa história da Ilha de Creta ter habitantes saudáveis e bem-dispostos é uma lenda. E as lendas não dão de comer a ninguém. Ainda por cima, parece que os tipos comiam muita fruta fresca e legumes. E peixe. Nada de fast-food. Tudo aromatizado com ervas e temperado com azeite. Arcaísmos gastronómicos sem sentido. Não são. Antes paladares e aromas a actualizar.
Não faz sentido, mas eu insisto. Há tradições que merecem ser recuperadas. Com sabedoria. Há passados a ser presentificados. Pela nossa saúde!
O meu passado tem incursões no olival. E correrias com cabriolices de saltar e correr. E trepar. E brincadeiras com as oliveiras. E a apanha das azeitonas. Sacudiam-se os ramos com varas e as azeitonas, no chão, deixavam-se apanhar. Depois, cirandava-se para que o vento levasse as folhas. E as mulheres cantavam. Tradições! Esta é para esquecer. Dava muito trabalho e danificava as oliveiras. Hoje é tudo mais moderno. E havia o rabisco da azeitona. E naturalmente, o azeite. Que ainda há.
E é por causa do azeite, produto tipicamente mediterrânico e milenar, que a publicidade me agradou. Gosto da receita, dos ingredientes e do meu país. E da voz. Com reduzida acidez. Porventura de proveniência seleccionada. Decantação e assentamento feito ao natural e com pouca luz. Amarela-esverdeada, com pepitas douradas, cheiro e aroma de frutos. Produzida em Portugal. Um país com tempo. Com tradições, hábitos e costumes. E quando o galo canta pela manhã é apenas para anunciar que é tempo de acordar.
Nota - Se música da playlist incomadar, deligue no botão do rádio ...
Hoje, recebi a visita do Sapo e dmirei-me. Um bicho divertido e multifacetado. Tão querido, o Sapo. Chegou bem trajado, alto e espadaúdo. Trouxe-me uma prenda. Gostei tanto que fiquei sem palavras. E o maroto ria a bom rir. Mas eu agradeci. Porque sou educadinha.
Obrigada, Sapo, pelo destaque.
Origada equipa.
Obrigada, Pedro, pelos parabéns.
Obrigada a todos que têm paciência para vir até cá. Voltem sempre, amigos.
Veio o Sapo e com ele vieram quase 700. Nunca pensei que fossem tantos, mas gostei muito de vos ter aqui. Que surpresa! Obrigada.
Quase metade das espécies de primatas está em risco de extinção. A notícia espalha-se pela televisão, jornais e afins aos gritos catastróficos. Indício que a coisa é mesmo grave. Admirável o nosso planeta. Redondo e robusto. Talvez frágil para quem o vê lá do alto. Iluminado e misterioso. Verde. Mas muito azul. Ao que parece, o único planeta conhecido a abrigar vida no sistema solar. Mesmo que existam, os extraterrestres não contam. Porque são verdes, muito feios e têm antenas na cabeça. Já chegam as parabólicas que polvilham as varandas e os telhados. E as paredes contíguas às varandas. Gostava mais daquelas que sobem aos telhados de braços bem esticados. Orientadas ao emissor mais perto. Quando o vento destrambelhava aquilo tudo, lá iam os homens ao telhado para as colocar na direcção certa e acabar com os chuviscos na sala. Era sempre uma emoção. Por causa dos riscos.
O ser humano anda por cá há um milhão de anos. Tempo bastante para perceber que o segredo é amar e não devastar. Que errar é próprio do homem. Insistir no equívoco é próprio dos idiotas. A evolução do homem foi coisa lenta e progressiva. Com muitos saltos. E surge o primeiro homo sapiens. A génese do homem moderno tem cerca de dez mil anos. E eu não acredito que alguém possa ser moderno ao fim destes anos todos. E as montras que se renovam a cada estação do ano? E os desfiles de corpos exercitados para aliciar mentes susceptíveis e carteiras em pele natural? Colecções para o frio. Para o calor e para a praia. Para o Inverno e para a noite. Padrões e feitios que se gladiam ciclicamente.
Os primeiros homens seriam ainda mais feios. Eu vejo-os muito feios. Grotescos e rudes. Uma mescla de homem e macaco. Muito peludos. Mas ágeis. Valha isso! Os macacos são uma espécie simpática. Continuam macacos. E divertem-se. Catam-se, coçam-se e brincam muito. Às vezes aborrecem-se e lutam uns com os outros. E gritam tanto! Afinal, sempre são os nossos ancestrais antepassados. Compreende-se a algazarra.
Outro animal que habita a terra é o lobo. É um bicho ruim. Muito associado à crueldade, rapacidade e ambição. O Capuchinho Vermelho, que o diga. Ou não é verdade que o lobo é mau e quer comer a incauta criancinha? Os pastores viram-se obrigados a criar cães pastores. Tudo por causa dos lobos. E a tia Rosa que me ameaçava com o temível bicho sempre que eu não comia a sopa? Mas Roma não. A maternal loba cuidou dos gémeos como se fossem seus filhos. Uma excepção aos hábitos do canídeo.
O macaco, o Homem e o lobo. O macaco fez-se homem. O homem age como se fosse lobo para aniquilar o macaco. E o lobo é que fica com a fama. Quem o diz é Hobbes que fundamenta a ferocidade entre os humanos homens. — o homem é o lobo do próprio homem. E o macaco é só macaco. Quietinho no seu galho.
E a notícia continua. Refere causas e consequências. E espanta-se. E o Homem perde a sua remota origem. Porque tem a mania que é lobo.
"O problema é que estes animais são facilmente atacados porque vivem em grupo e são barulhentos. Vai demorar a reverter esta situação porque são animais com relativa longevidade. É deprimente",explica Russell Mittermeier ilustre primatólogo.
E os homens não, senhor Mittermeir? Fazem tudo o que os macacos fazem. Mas com mais macacadas. Foram-se os dinossauros. Um dia destes os primatas. Tenho para mim que o Homem entra a seguir na linha da auto-extinção. Uma lobice, talvez, evitável. E como isto é cíclico, e acontece muito devagarinho, tenho pena de não estar cá para ver.
A sociedade actual tem culpa. Tem responsabilidades na peçonha que liberta. E não encontra tratamento para os males que se vão acumulando. E as coisas ganham asas. Correm o mundo multiplicadas por cem, por mil… Porque há a televisão. E a Internet dá uma ajuda. O que acontece ali sabe-se logo aqui. Em tempo real. Para isso é que servem os directos e muitos enviados especiais. Realidade impensável há uns tempos atrás. E lá que a Branca de Neve sonhou com o seu real casamento transmitido em directo, lá isso sonhou. Um sapatinho admirável. Outros tempos.
Agora tudo é mais transparente. A visibilidade apregoa-se e pratica-se sem limites. Por alguns e às vezes. As audiências socorrem-se de estratégias devoradoras de números. E o satélite tem tempo controlado. E os meios técnicos de transmissão em directo são desafios tecnológicos. Depois, seguramente por insatisfação, escrevem livros. Fazem filmes e suportam conversas no café. E os especialistas são excelentes comunicadores. Falam a toda a hora em todos os canais públicos da televisão. De preferência no horário nobre. Dizem que assim as pessoas, que não são especialistas, entendem melhor. Em Portugal há muitos especialistas. E, como tudo nesta vida, o que é demais é um exagero. Um massacre. A destruição da vontade das pessoas, já que não há alternativa. Haver há. Basta um suave toque numa tecla para acabar com tantos excessos. Mas chateia desligar uma televisão em estado de choque. É uma invasão descarada. E é nestes momentos que mais canais fazem todo o sentido. Os do cabo. Tão amigos que são os animais. E as viagens. E a História. E os filmes. E a música. E a ciência. Tudo alternativas livres de ameaças bélicas. Mortes e muito sangue. As que aparecem são ficção.
Vem isto a propósito do assalto ao BES. Até podiam ser portugueses. Ou checos. Ou ingleses. Ou chineses. Esses não que estão ocupados com os jogos olímpicos. Estão? O desespero não tem nacionalidade. Cenas repetidas até à exaustão. Os pormenores. A cronologia. A vida privada dos intervenientes. Os directos. E os especialistas, evidentemente. Também vieram os psicólogos. Tácticas e motivações. Efeitos aqui e lá. Testemunhos. A perícia e o armamento. O telhado e a janela. O instante. A hierarquia e o treino. O sangue frio. A aptidão dos homens. O clímax de um romance policial na cidade. Como nada mais estivesse a acontecer. E a cidade estivesse em paz consigo mesma. E o país também.
Portugal tornou-se refém da televisão. Portugal viu a sua protecção em directo e está tranquilo. Conhece quem cuida de si e estende o acto ao país inteiro. É, a partir de agora, uma terra sossegada. Com sonos seguros. Falar de insegurança e criminalidade será pleonástico. Ecos exagerados quando se exige algum silêncio. Para polícias e assaltos foi tempo a mais. Há privacidades a manter.
Na verdade, não me senti mais segura com o que vi. A polícia vai continuar a fazer o que sempre fez. Ou não faz. E os outros também. Sem preocupações televisivas. A sociedade é perita em criar males e propagandear as soluções. E é assim que nos divertimos a ver televisão. Em directo e em excesso. O zapping nestes momentos alivia. Ou premir o botão. Ou desligar a ficha e ler.Capitães da Areia de Jorge Amado é um livro admirável.
Sem surpresas e igual a si próprio, o sábado é um dia admirável. Porque ao sábado não acontece quase nada. Cumprem-se rotinas. Uma visita à família. Aos amigos. Banhos de sol e de mar numa praia atulhada de toalhas e pernas estendidas na areia. Compras em grandes superfícies comerciais. Têm quase tudo. E mais à mão que o tempo ao sábado não rende. Carregam-se sacos de plástico com asas para a cozinha. Limpa-se aqui, para sujar mais ali. E as crianças agitam-se porque vão visitar a avó. O relógio corre sempre ao sábado. Convencido que vai participar nos 100 metros barreiras. Os obstáculos aparecem constantemente. Nem sempre se consegue saltar.Mas um sábado em Agosto ainda é mais admirável. Emproado porque não vai trabalhar e ilude-se com o esplendor sol. E dá voltas e voltas ao mesmo sítio. E não vê o mar.E tão convencional!
Porque um sábado de Agosto é um dia esfarrapado de pessoas e de portas, não comi arroz-doce. Nem o aroma inebriante da canela. Apesar de gulodice fútil, eu gosto. Apesar dos triglicéridos eu como. Só ao sábado. O melhor mesmo é esquecer, por hoje.
Vou ver o filme do Pocoyo que comprei na feira. É divertido. E as borboletas sempre têm asas... mas falado em português!
A sociedade actual tem receio de si própria. Está prenhe de medos. Mas prepara-nos para os superar. Também nos defende e protege. No entanto treme. Porque o medo não é racional. Que seja por isso. Ou pelas armadilhas que ela própria instala. Com a vida que também é batoteira. Certas que o pânico é bem pior. O medo sobra-me…
O medo enregela a razão. Diz-lhe que não e o caricato sobrevém. Como se o susto não fosse temor. Há medos que se compreendem. Outros nem por isso. Não se entendem. E os que metem muito medo. A morte é um processo mais que natural e universal. Gera medos de várias cores. Não por partir, antes por não ficar. Não por abalar só, apenas porque se deixam pessoas que se estimam. Umas choram. Pensam que também irão e têm medo. Outras não. Recear uma formiga é risível. Porém real. O bicho trabalha que se farta e nunca pára quieto. Carreiro, carreirinho onde vais tão de mansinho? Temem que a comida falte e que não sejam notícia na televisão. Um tremor de terra assusta. Acordei comum barulho tremendo vindo do lado oposto ao meu quarto. A sala era a divisão da casa onde a minha mãe tinha um guarda-loiça. Com copos e chávenas. Também uma terrina e o resto. Duas dúzias de pratos. Ou mais. E canecas que a minha avó trazia, sempre que nos visitava. Assim como se fossem vidros gigantes a baterem uns nos outros. Depois, vieram os gritos, portas a abrirem-se. E num instante a rua celebrava um nível de assistência pouco usual. Um prime time da sismologia. Só percebemos depois. Primeiro assustámo-nos. A seguir veio o medo. Simultaneamente o pânico. Desta vez a coisa foi rápida. As consequências nem por isso.
O medo é assim, não se explica. Nem se diz com palavras escolhidas. Uma para cada um. Não chegam. O catálogo dos medos tem páginas infinitas. Mas há palavras que metem medo. Paz. Chama a guerra. Destroços. Por causa da maré negra. Dos acidentes rodoviários. Apartamentos. Há as barracas. E os vãos de escada. Amor. Carrega a separação. O divórcio de afectos. A perda de amados. A palavra vida que descaradamente apregoa a morte. Inverno porque apaga o Verão. Mar pois come os rios. Às vezes os barcos. E não tem cabelos para eu me agarrar. E trepar. Sombra é uma palavra ruim. Vultos e restos. São formas sem jeito. Descompostas. Negras. Não se desnudam. E à noite, ganham rostos hediondos.
Por isso, gosto das formas que a luz me permite ver. Nem que seja em contra-luz. Com muitos reflexos. E desvios esplêndidos. O belo é palavra má. O feio existe. O imperfeito. Mesmo que irracional. Mas ecos da juventude e da velhice fotografam-se na minha memória. As fotografias não se questionam. Fixam instantes verdadeiros.
E hoje tive medo. Por causa de uma coisa que eu vi. Um vulto esbranquiçado que sobreveio ali. E Pã ensina os outros deuses a tocar. Eles é que não prestam atenção...
Admiráveis e difíceis, as escolhas. Ou isto ou aquilo. Talvez o outro. Não sei. Escolhas… E a conjunção separa e desliga. Quero lá saber se a coordenação implica método e ordem. E se a relação não é hierárquica. A subordinação impõe domínios. Instala obediências subalternas. Não importa se a relação é gramatical quando a disjunção se impõe. Pedidos e opções. Optar implica preterir. Obriga a escolher e às vezes não se quer. Ou não se pode. E as alternativas são escassas. Como escolher entre um gato preto e outro branco se não quero nenhum? O preto dá azar e o branco é sorte que não tenho. E os gatos felinos são. Prefiro um cão.Todavia, decidir nem sempre é fácil. Nã pode se há pessoas. Se existem humanidades. E as pessoas não são chinelos de enfiar no dedo. As decisões tomam-se de manhã. Depois do pequeno-almoço. Antes não, que a opção de acordar cedo nem sempre é bem aceite. O corpo que não teve tempo para dormir o que tinha direito. Escolhas da vida. Sem opção, a maioria delas.
Por vezes, faço contas e jogo na antecipação. E ponho-me à janela a adivinhar o que vem para aí. Nem sempre consigo. Não vejo nada por causa do nevoeiro. Mas tento. O que não me agrada mesmo é que escolham por mim. Que me atribuam vontades que não tenho. Não sei, sinto-o como um insulto.
O pedido é fácil. Pedir só aceita duas possibilidades que se dizem nos minúsculos advérbios de negação e afirmação. Não e sim. Talvez aqui não serve. Que instaura a possibilidade. A dúvida é terrível. Prefiro contornos bem definidos. Já basta a metódica, mas isso é assunto que aduba o conhecimento. Pedir é solicitar alguma coisa a alguém. Ou dá ou não dá. E a conversa que fique por ali. Não há outra hipótese. Por vezes até nos pedem para pedir. Insistem muito. E por escrito é melhor. Registe-se a pretensão. Depois não abençoam a coisa. E tecem comentários jocosos. Talvez insultuosos. E é nesse instante que a minha capacidade de entendimento se consome e falece. A minha vontade também. E tudo é tão fácil. Basta dizer que não. Ou então, não terem pedido para pedir… Por que me pedem para pedir se não querem que o faça? Ou não querem dar. E decidir o que eu quero?Assim como assim, não tenho escolha possível. Quem manda pode sempre. Só não gosto que decidam por mim, já disse. Mas podem mandar. Eu obedeço.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]