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ponto de admiração

ponto de admiração

07
Mar09

amarelar

Paola
 um ano, criei um blogue... dizia eu que para "armazenar" coisas... um arquivo... Há um ano, mostrei o blogue ... em segredo e corava pela ousadia... Hoje, para ti, vai um beijo abraçado, GMV... 
 
Hoje, para todos os que aqui têm chegado, vai a minha gratidão... Hoje, reescrevo o mesmo post... com mais emoção nas palavras e muito embargo na voz. No silêncio de mim ...
 
 
 
Choupana onde se ri vale mais que palácio onde se chora...
 
 
 
Sou um canário e o meu nome é Mário. Belo, amarelo, dois anos de idade. A minha melhor qualidade? Cantor, naturalmente! Vim de longe, de muito longe... Viagens de família, linhagens a cumprir, rituais repetidos. Das Ilhas Canárias, conflito adiado na História assinalado... Miraculosa plumagem! De amarelo pintado, a cantar desenhado... ou branco ou mesclado, mas salve-se a tradição que me confunde com o Sol. Sempre fui fiel às tradições. Do Natal, do Mar, do Falar, do Cantar a dor no Fado sofrida. E então, se a alpista é miragem de ave canora engaiolada? Gaiola? Belo e encarcerado! Gaiola? Cantor amordaçado!Tristes aqueles que não entendem a liberdade da gente! Destino fadado - fada má certamente - para mim. Assim: pássaro , belo, prisioneiro, aedo , trovador... Tanta falta de rigor. As asas por voar, as penas - que não são pequenas - a crescer, o canto a esmorecer... Triste sorte a minha! Determinada e fechada junto à janela da cozinha. Espaçosa, arejada, escura nas madeiras. Tudo demarcado e marcado pelo gosto. Castanha , florida, ensolarada - ai, Sol que não me reconheces - comestível, perfumada, cozinha... Ao fundo a janela. Grande, envidraçada, lindas cortinas de renda ... brancas e com muitos folhos. Cobres aos molhos. No fogão e no balcão. Reluzentes - tão areados, coitados! Ampla, ventilada, dourada, uma enorme assoalhada, eis a minha gaiola. Suspensa num suporte também dourado. Requinte engalanado, maldade abismal de quem crê fazer-me bem quando eu me sinto tão mal. Liberdade paradoxal, perplexidade num pássaro alado sem asas para voar... Poleiros a reluzir, baloiço - que luxo - de embalar e sonhar com as asas que não tenho, porém invento. Passatempo para ludibriar o tempo... Tudo perfeito. A cozinha, a gaiola e eu que caibo nela, à janela. O que não entendo mesmo é se me encontro preso - definitivamente ou se me fizeram refém não sei de quem. São, evidentemente, situações diferentes de pronunciar cativeiro. Preferiria saber a ter que adivinhar. Só que não sei qual escolheria. Que importa quando não me permitem a escolha e se não tenho asas para voar? Conformo-me e pronto! Sou pássaro amputado em arames castrado! Enclausurado? Paciência, rendo-me à evidência de príncipe encantado no palácio algemado. Inocente mentira de quem só pensa no caminho para lá... Íngreme, penoso ? Sei lá, se a possibilidade de experimentar não há? Somente uma vez... Talvez não vá gostar e possa voltar... Eu volto, prometo! Insensíveis, cegos na ganância de me prenderem ali... a cantar.... quando eu estou a chorar lágrimas reprimidas, dores sentidas, liberdade aprazada sem dia marcado. Raptado ? Alternativa ao nada que é já tudo, tanto na libertação almejada. Refém sem data no tempo que não passa, mas desgasta. Bastam-me as culpas que recuso, o perdão que não peço, a alma que não vendo. Antes pássaro amarelo num livro decalcado. Resta-me a janela que é a ponte entre o que sou e o que desejo e não vejo, apenas sonho! Lá fora o vento agride o bom tempo que não há. A chuva repete-se na ladainha costumeira. Ping ... ping ... gota a gota. Um relâmpago de quando em vez ilumina a noite escura que não me permite sonhar... Um trovão que de imediato me vem acordar. Vejo ninhos e árvores e sei segredos que não desvendo porque é castigo estar aqui. Imagino-me pássaro a voar, a voar e apetece-me cantar a minha loucura... D. Quixote, pois então. Mas não, ouvi um trovão. Que vozeirão a vociferar a razão de eu estar aqui. Ainda bem que não o percebi. Cumpre-se a Torre de Babel. Aquilo não são modos de falar com ninguém. Apenas me assustei, contudo não gritei, juro! Apenas acordei... A minha vida é um temor permanente. Receio a fuga que idealizo e não concretizo. Temo a prisão que me nega a evasão que desejo. Estremeço quando a porta se fecha a adiar, a adiar... Arrepio-me com a possibilidade de a deixarem escancarada... Fecham-na sempre. Vida madrasta . A Gata Borralheira foi tão feliz! Oiço o vento a entoar melodias de embalar, cantigas de amigo... Parto com ele à conquista do mundo que me foge, grito a fantasia que há em mim e canto a magia da meia-noite. A fada perdeu a varinha de condão! Não tem perdão. Não! Não! Lá isso é que não... Da janela eu tenho o mar. Vejo pontes e barcos e homens, muitos homens. Oiço vozes escondidas e perdidas no movimento contínuo das marés. Encontro sonhos adiados nos olhos dos mareantes que se fundam no cais. Sem poesia, sem paixão, com adamastores na imaginação. Sucumbem ao peso da viagem que nem começam. Percebo ondas que vêm e vão magoadas de não continuar em movimentos inquietantes, irrequietos, ondulantes, sedutores, mas tão redutores. Não deslumbram as varinas atrevidas , bamboleantes e cantantes. Livre circulação, não! Marionetas, controladas à distância pelo tempo a dizer que não. Os homens descontroladas não entendem que são prisioneiros da vida, amarrados aos sonhos que não levam para o mar. Livres e tão presos, os pobres... Não sabem que o mar é decepção de quem quer partir e fica ali. É a fantasia, a razão, o espectáculo ,  deixa de quem só sabe ficar... E eu queria tanto ter um barco, galgar distâncias, cumprir a História: navegar, navegar. Ir para além da Taprobana. Em desejos e mitos concretizados, mais do que poderia a dor das minhas penas e, entre sonhos meus, desenhar a minha saída para o mar, Utopia decrépita em gaiola doirada. Barco fundeado ao largo, lágrimas reprimidas na viagem por acontecer. Miserável, para que queres asas se não sabes voar? No outro lado há frio e vento e chuva e um calafrio percorre-me o corpo ... sinto-o ... inunda-me a alma. Vem trovão! Acorda-me... Lá fora, as árvores, trémulas e amedrontadas, agitam-se. Quem diria o medo delas! Estouvadas que não entendem que é somente o vento a correr por ali. Cavaleiro andante a cavalgar , a saber, a conhecer. Invejo o vento que é livre para voar e pensar. Amo o vento que não se deixa amordaçar. Há vendaval de novas no jornal ! É o vento a sustentar o pensamento. Um rapazito corre. Ele quer percorrer o tempo, que se lhe escapa, para o domar. Ignora que a ventania não se dobra à vontade da gente. Pressinto-o triste.  Tão triste...A sorte que nós temos ! Tu petiz infeliz correndo pela rua, apesar do vento... Eu canário perdulário em gaiola doirada... cara envergonhada a espreitar à janela. Olhos sequiosos de ver, boca faminta de não ter,, mãos calejadas de tanto pedir, roupa gasta a desistir... Tens, meu amigo. a liberdade de fugir! Eu é que não! Que vês? Não te iludas. Aparência ilustrada, ave desasada ... Espera! Fica mais um pouco Estou rouco de cantar para ti... Eu canto! Não está mais ali. Encontro desarrumado, mas tão perfumado. Foi uma rosa que eu vi: bela, pequenina, efémera. Eu queria contar-te um segredo. Nem o meu degredo repetido, nem arvoredo escondido. Tão somente um segredo. Pequenino! Que fosse nosso, meu e teu. Olhos nos olhos bastava para nos entendermos... tu não olhaste para mim. Divina cumplicidade na amizade a haver. Um segredo... Amanhã é Natal! Narcotizante inebriante de tanta gente, simplesmente porque é Natal. Amarguradas e desajustadas as pessoas circulam descrentes das luzes reluzentes. Formigueiro domingueiro em dia de semana. Tão apressadas que não dão por nada. Nem reparam que estás ali e eu aqui. Compram, compram sem razão. Predestinadas... coitadas! É Natal... elas estão distraídas, tu não. Cumprem o calendário, tu inventas o teu fadário. Elas têm, tu és, eu estou. Dá, não compres que corrompes o amor que contigo nasceu. Amanhã é Natal... Porquê se amanhã é segunda-feira? Vamos fazer Natal? Para quê se não aprendeste a brincar. Inutilidade tamanha! Um brinquedo de infância para quem não é um criança... e eu nem vi o mar. Anacronia com sentido proibido... Vem! Eu ensino-te a brincar e  a rir e a chorar e a sonhar e a amar e a perdoar e a cantar... Tudo, excepto comprar na véspera de amar.  Um dia será Natal. Numa fuga planeada. Definitivamente! Aqui, aí, sempre! 
 
- Bom dia, Mário. Dormiste bem?
-Tão lindo o nosso canário...
- A gaiola está bem ali?
- Cuidado com a porta!
- Fecha a janela, não vá ele fugir...
 
 Janela trancada. Cortinas cerradas  E eu só oiço o mar...
 
[fotografia da internet]
 
04
Set08

mandar

Paola

 eu não mando

 

Aqui, no meu ponto de admiração, digo verdades. Digo mentiras. Ambas ficciono. Invento e reinvento. Aqui finjo ambas. E é nesta incerteza que gosto de estar. Porque eu conheço-as! Entre a verdade-máscara e a mentira-verdadeira. Um jogo duplo. Que as palavras me deixam jogar. Ou não. Admiro-me com o sim e com o não.

Com o pôr-do-sol. E o perfume das flores. A emoção chega com as gargalhadas puras e sonoras dos meninos. Com o Sol a acariciar o mar. E só com o mar. Admiro-me com todos os sentidos. Por isso, choro com as desgraças que por aí há. Praguejo com as que me inventam. Porque a vida é assim. Abraça-me umas vezes, chicoteia-me outras. E eu, às vezes, não a percebo. E chego à conclusão que ela me plagia. Que mente e diz certezas. Que fantasia. Provavelmente, terá um blogue com o mesmo título que o meu. Um dia, hei-de encontrar o endereço. Só que sabe mais palavras do que eu. Para dizer os sentimentos todos. Eu nem sempre sei.

 

Hoje, somem-se as palavras que eu demando. Esgota-se a intenção de jogar e fingir que estou a mentir. Ou não. Não me apetece redigir invenções de mim. Não sei palavras que me exprimam. E creio que estou a maltratar o não. Um triste advérbio de dizer não. Porque não quero. Mas eu não decreto, que fique claro.

 

Estou desgostosa. Não sei sinónimos. Não sei definições. Nem decisões. Mas estou. Pronto! Já disse. Por causa das pessoas. Que pensam que dividir é o mesmo que somar. Precipitações apressadas. Sim, talvez, NÃO!

 

 

30
Ago08

adormecer

Paola

  regresso à escola ou

 

 vidas, pecados e saltos mortais

 

É sábado, eu sei. Amarelo e estreito. E depois? Um dia a seguir ao outro. E o outro é sexta-feira. E depois? Se a contagem é decrescente. E o ano tem nome. Não é Juliano, não. Nem sequer Gregoriano. Tem nome que não digo. Há muito que a maravilha é a Lua. Também o Sol. Ainda mais o encadeado dos dias e das noites. E a Lua tem fases. E a minha não é boa. Mirra-lhe o brilho que já teve. Definharam as vontades. Adormeceram as intenções. O tempo é insuficiente para recitar o ciclo das estações. E agora é Inverno. Neva no beco sem ali. O Sol desfez as lendas, abriu fendas. Está frio. Tenho frio!

É sábado. A semana tem sete dias. E o sete é um número de mistérios. Significados e simbologias. E sete são os dias da semana. E depois? Se o sétimo dia é sábado. E sete são os pecados mortais. Inveja, Gula, Soberba, Vaidade… perece o último sábado de Agosto. Eu sei. É sábado. E depois?

O sete é símbolo da perfeição. E que importa se é uma ilusão? Se o mês acaba aqui. Amanhã é Setembro e eu já nem me lembro de um dia assim. Desconsolado e pardacento. E como o gato tem sete vidas, quando só de uma necessita, duas serão para mim. Fico com três. Exactamente a conta que Deus fez. Para morrer e ressuscitar a seguir e voltar a morrer quando calhar a minha vez. É sábado, eu sei. E depois? Se é o último e as inquietações chegarão mais do que sete. Por isso, não comi, como de costume, o admirável arroz-doce da dona Perpétua. Porque segunda-feira não é dia gulodices. E a gula é um dos sete pecados mortais. 

Segunda-feira é a introdução. O ponto de partida da história e a apresentação das personagens. O desenvolvimento vem a seguir. A intriga e muitas peripécias. E o clímax chega de mansinho. A conclusão? Só quando tudo estiver bem resolvido. O desenlace? Narrativa aberta. Com algumas fendas. Prometo não invocar o santo nome de Deus em vão. Sempre que possível e se o engenho e a arte me coadjuvarem. E santificarei os domingos, certamente. Os sábados  que os antecedem. E todas feriados e dias santos. Todos!

Porém, não me obriguem a guardar castidade nos pensamentos e desejos. Desacordos e insatisfações. Não posso! Nem serei capaz. Mas vou pedir que me contem uma história de pensar. Com os Sete Anões. A Branca de  Neve mais o Príncipe. E o beijo. Mas sem a madrasta rainha. Para não ter que fugir a sete pés. Não posso. E a minha intimidade como os laboriosos pequenotes conta-se no livro que recebi num Natal, em Dezembro.

 

 

[imagem da Internet]

 

29
Ago08

tourear

Paola

a vaca não tem culpa

 

 

Não entra mais uma alma. A praça está atulhada de gente sôfrega. As bancadas da praça pintam-se da cor do Verão. Da exaltação e da impaciência. Na arena, há pedaços de pânico. Verónicas de medo. Capotazos de arrojo. Nas bancadas, os olhos estão incrédulos. No redondel, capotes a rigor misturam-se com lágrimas do suor que escorre assustado. A multidão acena palmas e olés. O cartel garante-lhes um espectáculo assombroso. Inolvidável. Único. As palavras chegam às tábuas vestidas de espantos. Imperceptíveis. Cá de baixo, os rostos não têm feições. O bruaá antecede as cortesias. O cornetim anuncia a hora. O pavor assalta e mistura-se com a vaidade. As mãos tremem intimidadas com a pega de caras. E advertem que não sabem nada daquilo. Que a valentia não está ali. Mas  o apoio escorrega das bancadas. Desistir seria a vergonha. As pessoas pagaram bilhete. E a diversão tinha que continuar. A inquietação  voa de olhar em olhar. A cumplicidade também. E medo não é fraqueza, porém o risco é verdade. Ali, na areia ocre não há treino nem perícias. Apenas descaradas afoitezas. Imprudências juvenis. E ao som do cornetim começam a entrar os artistas. Que fazem do sobressalto graça. E a mole humana ecoa júbilos colectivos.

 

- Touro! Ó touro lindo! Chama com passos amedrontados.

- Touro! Insiste com o capote tremulando advertências.

 

A assistência enlouquecida pede mais. Mais arrojo. E as pernas flutuam a cada movimento do bicho. Pela cor negra da pelagem. Pelos cornos em pontas que estavam embolados. Ninguém via. A multidão não cala a êxtase. O boi investe. Ninguém via. E o toureiro cai no chão.

 

- OOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOh!!!

 

A humilhação pública acontece na arena da praça de touros. A saída em ombros jaz na terra castanha e arrependida da arena. O toureiro permanece estendido. Entram os forcados. E os cavaleiros. E mais toureiros. O público levanta-se. As palavras calam-se em silêncios suspensos. O homem é levado em ombros. A multidão ovaciona. Esgotam-se os aplausos. Gritam-se olés e hurras muito arrebatados. Emocionados. Dá a volta. Não consegue perceber que é figura  do espectáculo que sucumbiu à primeira faena. No rosto rasga esgares de dor. De derrota. O sucesso de uma cornada memorável. E recolhe à enfermaria.

 

E volta convencido que é figura de primeiro plano. Recebeu duas orelhas na mesma tarde. Por isso, é carregado nos ombros e transportado para fora da arena até o portão principal. Ali, mereceu o galardão máximo para um toureiro. Sem saber que a ambulância imprime arte à lide de tourear o percurso para o hospital. E pergunta como pode explicar a gratuidade da aventura. E se o touro o matou. Não! No Minho, bem à tardinha, Apolo recolhe a manada. Atravessa uma nuvem aqui e outra acolá. E as pachorrentas vaquinhas dormem na corte. Sem culpa que a neblina negra do medo lhes adultere a condição. É o cheiro que avisa que elas estão ali. Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz.” Platão lá sabia porquê. É preciso ver!

 

 

[Fotografia de GMV]

 

28
Ago08

caminhar

Paola

 pegadas de amizade

 

 oito alegres pés

 

 

 

Afeiçoados na vontade de caminhar, num dia de morno de Agosto, seis pés rumam ao Sul. Levam a vontade de abraçar o mês que vai acabar. E querem beijar o mar. E todos seis correm para o Sol. E andam, andam até lá chegar. Envolvem-se no amarelo e admiram-se com o azul. Surpreendem-se com o verde. E comentam que arrulhar rima com marulhar. E o mar espreguiça-se. E lá ao fundo, a cadência é marcada pela vastidão azul-mar. E correm atraídos pelos cânticos sem olhar para trás. Ouves? É o mar a desenhar poemas na areia. Pois é. O mar é um poeta, disseram dois. Um escultor, opinam os outros dois, olhando as obras cinzeladas ao longo de tempos de Inverno. E comentam que ali habita Orfeu. O mais prodigioso músico que já existiu. Poeta também. Por isso, as gaivotas poisam para o escutar.

 

Oito contentes pés foram espreitar o mar. Mais dois se juntaram. E todos os oito pés na areia dançaram. E Orfeu males sana cantando e tocando a sua lira de ouro. Músicas de espuma. Canções de areia. Ritmos do mar. E dois dos oito pés vão continuar a cantar. Porque nesta sinfonia da vida, oito são mais do que dois.

 

 [fotografia de Paola]

 

26
Ago08

assobiar

Paola

a feminina e histórica culpa

 

Um padre mexicano suscitou uma assobiadela das grandes. Seguro na sua decisão, o homem recomenda às mulheres que não usem minissaias ou biquínis. Assim, evitar-se-ia o assédio sexual. As mulheres ficariam na paz dos anjos e os homens sossegados. Não há dúvida. O mal é feminino. Malditas mulheres. Demoníacas. O que elas inventam para provocar os afoitos machos. O clérigo descobriu o fundamento para tanta violência.

 

Dizem as lendas que Lillith foi a primeira mulher de Adão. Irritada com a submissão insurgiu-se. E depois de amores falhados e insípidos fugiu. Emerge Eva. Obediente e mansa. Dependente. Adão gostou. Os homens gostam. Mas gostam tanto que nem lhes passa pela carnal cabeça que tivesse existido uma tal Lillith. Parece que ao padre mexicano também não. Inicia perseguições. Oculta o mundo feminino. Cala-as. Ignora-as. Acusa-as do mal do século. De heresias. Acende a fogueira. Empurra-as para lá. As potenciais pecadoras não merecem melhor sorte. Disseminadoras de pecados. E assim se validou a submissão da organização deliberada pelos homens.

 

O padre mexicano não incrimina a maçã. Muito menos a serpente. Ovaciona o paraíso, alerta para o fruto ilícito de saias vestido. E apregoa que a ignorância não é pecado. Mas é! E para ajudar o padre, eis que surge, nesta história, o reitor de uma universidade. Também ele instruído. E muito respeitador. Aplaude o padre e, do alto da sua cátedra, muito bem explica. Toda agente aprende. De facto, o assédio e os actos de violência contra as mulheres são causados pela sua forma de vestir.

 

As coisas que a Igreja inventa! As coisas que as universidades sabem! E eu juro que não sabia. Lá, como cá! Ainda me admiro com a posição da Igreja. Mesmo que individualmente assumida. E, nem eu sei a razão, a minha memória contou-me histórias. Com séculos de teimosia. Com verdades mentirosas. E o Papa teve um encontro a portas fechadas com as vítimas de abusos sexuais cometidos por membros da Igreja Católica…E pede desculpa. Mas o padre mexicano não concorda com conversas ou gracejos picantes. Das mulheres, evidentemente! Que pena. Que sensaboria. Uma conversa sem malandrice não tem espírito, senhor padre! Desenvolve o pároco que as minissaias despertam o "lado doentio" dos homens. Ele, que é homem, ou padre, lá saberá de que fala.

 

Admiro-me, ainda, com estas clérigas atitudes. Admiro-me com o disparate repetido ao longo da História. Admiro-me sem qualquer borbulhar feminista. Admiro-me por ser mulher. Só por isso.

 

fotografia da Internet

 

23
Ago08

sabores de sábado

Paola

  à moda antiga

Admirável gulodice. De aroma e sabor. Flexível na forma de cozinhar. Prepara-se na tolerância dos usos e costumes da gente. Sempre com uma boa dose de prazer.

 
1 Chávena de chá de gargalhadas

1 Pitada de coscuvilhice

1 Vagem de lágrimas

2 Litros de benéfica amizade

1 Chávena de chá de idoneidade

1 Pauzinho de desatino


No café da Dona Perpétua, sentar na mesa mais afastada do balcão. Por causa dos atropelos matinais. Há quem vá para ali tomar o pequeno-almoço. Juntar um pouco de coscuvilhice, apenas a cobrir o tampo e aguçar o engenho da oratória, e uma pitada de lágrimas de rir. Levar a conversa moderada, mas mexendo sempre. Com as duas mãos. Energicamente. Sempre que necessário, com os dedos também. Para contar. Para indicar.


Juntar a amizade, sem lavar, e levar ao fogo das palavras, mexendo sempre, sem deixar secar completamente a boa disposição. Enquanto mexe, não deixe de cumprimentar quem chega à mesa. Ou quem passa.


Entretanto, convém ir pondo os projectos a aquecer. É conveniente mudar local. De preferência mais arejado. Sempre de acordo com o que vai fazer a seguir.


Quando o assunto começar a secar, juntar outro bem quente e aos poucos, gargalhando sempre. Acrescente uma pitada de bisbilhotice e um pouco de vida pessoal.


A prosa deve ir sempre fervendo em lume brando. À medida que vai secando, junta-se mais, em pequenas quantidades, sem deixar de mexer. Sempre a conversar.


Quando terminar de juntar as palavras, acrescente as compras e os desatinos. Mexer e deixar ferver. No final, passar tudo por planos futuros. Há que preparar a semana com antecedência.

 

O processo de cozedura demora cerca de 5 horas, às vezes 6. Ou 7. Até pode durar o dia todo. Tudo depende da qualidade dos ingredientes. E da vontade de comer.

 

Aproveite para almoçar. De preferência grelhados. E muita salada. Verdes de tonalidades várias. Combinam com a cor da canela. Aproveite para apurar a conversa e cimentar a amizade.

 

É preciso paciência, mas vale a pena! Serve-se frio, morno ou quente. Depende dos gostos. E do apetite. Em taças, pires ou travessas. Depende de quem come. E sempre, mas sempre muito bem adornado com risos, gargalhadas e cumplicidades com cheiro a canela.

 

Se se esquecer de algum dos ingredientes, não desespere. Recorra ao telefone. Acrescente o que estiver em falta. E continue a mexer...

 

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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