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pela pimenteira
Foi sábado. Dia de comer arroz-doce. No sítio do costume, evidentemente. O vidro translúcido teve sabor a canela. A boca leva o corpo a pecar, ao sábado. Depois o café. Admirável aroma. As conversas contidas durante a semana polvilham a mesa de migalhas de exclamações, interrogações e declarações. Os cotovelos pedem apoio. As mãos cansam-se a falar. Os olhos riem-se e choram. Na mesa estende-se uma toalha bordada com palavras atropeladas pela vontade de dizer. Por sílabas átonas e tónicas, mas sempre emocionadas. Pronunciadas numa única emissão de voz. A tonicidade está por nossa conta. Dependendo da intensidade que lhe queremos dar. É que as palavras sem emoção não têm sabor. Tal como o arroz-doce sem canela. Um bom tempero aguça o engenho.
- Preciso de uma pimenteira...
- Hã !!??
Embora o meu segmento fonético de grandioso espanto não tenha contribuído para a deterioração da conversa, senti que foi devolvido com uma momumental estranheza. O contexto nunca estorvou o entendimento de horas e dias de palestra sem interregno. Raríssimas vezes se exigiu propósito. Diz-se e pronto. O contorno pode muito bem chegar depois ou nem chegar. Mas uma pimenteira? Ali, misturada com canela, arroz e café? Claro que há gostos para tudo. Café com pimenta? Talvez. Só que não lhe sabia tamanha singularidade.
- Vamos!
E eu fui. Com a ténue sensação que ia à procura da dita. Há muitos séculos que o mundo ocidental vive obcecado pelos produtos vindos do Oriente, é uma verdade histórica. Logo é mesmo verdade. Creio que as especiarias vinham de terras nunca vistas e onde dificilmente se podia chegar, por conseguinte tão desejáveis. Parece, também, que nenhuma outra rota comercial colocou em risco tantas vidas e nações, nem desencadeou tantas guerras e descobertas. Não me tinha passado pela cabeça correr perigos escusados. Nem sequer estava interessada no assunto. Cheirava-me a uma anacrónica teimosia.
Por outro lado, não me apetecia analisar globalizações, nem a modernidade do mundo globalizado, nem discutir o papel das especiarias na génese da coisa. A história está mal contada. Cheia de dramas. Apimentada por exotismos vindos dos confins da terra. E já foi há tanto tempo! De carro não seria fácil. Pelos pneus e pelo preço da gasolina. Outro condimento bem apimentado. Iria a casa? Há sempre pimenta em casa. Branca e preta. Bagas coloridas para o bife. Moídas em moinhos de roscar.
Seria? Não era sábado?
Pensamentos errados. Idiotas. Ignorantes. E falava-se disto e daquilo e mais daquele outro assunto do dia anterior. E ríamos. E falávamos. Pimenteira? Uma peça desajustada. Por mais que me esforçasse não encaixava. Pimenteira? Que raio é uma pimenteira?
- Hã!!!!! Não sabes?
- Não…
Humilhação. Vexame. Vergonha. Deveria saber? E numa excessiva tranquilidade apimentada pelo prazer de acentuar a minha ignorância. Explicou. Com muita calma. É uma árvore. Tem casca lisa e acinzentada, folhas, flores e frutos. Elementar. Básico. Que ultraje! A sua madeira é própria para o fabrico de bengalas. As flores são proveitosas para a produção de mel e as árvores dão sombra. São lindas cercas vivas. Um ornamento admirável. O pó resultante da trituração do grão é a pimenta…
- Ah! Como os grãos do café?
- Pois…
E eu que nunca tinha pensado no assunto. Distracção imperdoável. Se calhar julgavas que a pimenta vinha do supermercado. Troça. Rimos.
- O café vem! Não vem?
E dei por mim a pensar que, cada vez mais, se perde a noção da origem das coisas. Que as naturais são verdadeiras. E que estudar etiologia deve ser uma enorme chatice.
(Fotografia da Internet)
Não desistimos!
Entrei, sentei-me e pedi um café. Não queria absolutamente mais nada. Comigo, à mesa, um sono que não se extinguia. A má disposição manifestava-se no meu rosto, nos meus gestos, nos meus silêncios. Que me importava se a filha da dona do café tinha iniciado o seu estágio; se o carro da vizinha estava mal estacionado; se a outra ia passar o fim-de-semana à terra ou se o Benfica jogava com o Vitória de Setúbal ou se seria o último jogo do Rui Costa. O meu sono impedia qualquer tentativa de sociabilização. Nem pensar. Eu precisava urgentemente de um café. Sem açúcar, como habitualmente. Prescindia da conversa da treta.
Exigia-se uma conversa afável, que agradasse aos meus interlocutores. O silêncio seria incómodo. Havia que jogar o “pagas tu, pago eu”. Igualmente serviria o "amanhã sou eu a pagar". Impunha-se uma boa dose de perseverança para aguardar que a senhora empregada acabasse o rol das moléstias da sogra. Não tinha defesa. Inábil para engendrar a melhor estratégia. Ainda não tinha tomado café...
Choquei de frente com a minha matinal angústia. Entrei no café com cara de poucos amigos, o que nem é de todo mentira.
Inabalável, no meu objectivo. Entrar, sentar, tomar um café, sair. Coloquei as moedas sobre a mesa de modao a não exigirem troco. Em silêncio! Nada de amena cavaqueira, de gargalhadas circunstanciais.
Ao balcão serviam-se diálogos, exprimiam-se emoções. De pergunta em pergunta, chegavam às respostas. Às suas. Era cedo de mais e eu tinha sono. Mas elas procuravam chegar à prova da existência de verdades absolutas, numa tortura verbal muito cartesiana. E eu sorvia o café na certeza de que tinha sono logo existia.
E elas não se calavam. O governo fechou maternidades. O governo encerrou centros de saúde. O governo cerrou hospitais. A ministra fecha escolas? A escola? E o meu filho? Pois, e a minha? Não cabem todos. São muitos, alunos, professores... A ministra trata-os com se fossem gado. Os miúdos não têm condições. E a conversa seguia animada. O jogo jogava-se entre a pergunta e a resposta. De vez em quando o exemplo.
Ouvia. A conversa passou a ter algum interesse para mim. Afinal, já bebera o café.
Agora passam todos? De que serve estudar se ninguém reprova? Coitado do meu filho! Sempre bom aluno... Que injustiça! Todos passam. Estudar para quê?
Não concorda, professora? Era comigo! Senti o chão a tremer! Um desnivelamento, um mosaico partido pela certa. Uns segundos em que deixei de saber se era pequena ou grande. Um momento em que errado e certo são sinónimos. Um instante raro em que acontece o eclipse da razão, pelo instinto... Tinha sido descoberta. Sorri... Levantei-me, dirigi-me à porta. Voltei a cabeça, olhei para elas:
- O seu filho consegue. O país é que não sei...
Não esperei pela resposta. Tinha sono. O melhor era fechar a porta... Ningém fecha a deles?
(imagem de Concurseiros)
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