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ponto de admiração

ponto de admiração

09
Dez08

desassossegar

Paola

solidão com palavras
 
 
Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavras. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem.
 
E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.
 
Livro do Dessassossego, Fernando Pessoa(Bernardo Soares )
 
E as palavras bruxuleiam desassossegos em mim, tu sabes. Não o vejo, mas sinto-o... Pressinto-o na correria desenfreada das palavras que fogem daqui. Adivinho-o nas vozes que ouço nos corpos que eu queria aqui. Perscruto-o nas pegadas abandonadas por passos que não sei. Vislumbro-o nas mesas vazias de café.
 
O café sabe-me sempre a desassossego. É a cafeína que conversa comigo até de madrugada sem sono de dormir. Se não converso com ela, entorna arrufos desagradados. Por isso, desço as escadas. Um café, por favor. Pensei, na inabilidade de pronunciar palavra. E uma chávena branca poisa comigo. Provocadoramente fumegante. Insinua-se em aromas libidinosos… e eu dou-me a uma tranquila paixão. E ali, reparto circunstâncias. Desassossegos da rua. Tudo à mesa do café… Ali, onde nunca estamos sós, porque fruímos o ruído dos outros.
 
Subi as escadas com o mesmo desassossego com que desci. Pressinto-o na correria desenfreada das palavras que fogem de mim...
 
14
Jun08

temperar

Paola

l pela pimenteira

 

 

 

Foi sábado. Dia de comer arroz-doce. No sítio do costume, evidentemente. O vidro translúcido teve sabor a canela. A boca leva o corpo a pecar, ao sábado. Depois o café. Admirável aroma. As conversas contidas durante a semana polvilham a mesa de migalhas de exclamações, interrogações e declarações. Os cotovelos pedem apoio. As mãos cansam-se a falar. Os olhos riem-se e choram. Na mesa estende-se uma toalha bordada com palavras atropeladas pela vontade de dizer. Por sílabas átonas e tónicas, mas sempre emocionadas. Pronunciadas numa única emissão de voz. A tonicidade está por nossa conta. Dependendo da intensidade que lhe queremos dar. É que as palavras sem emoção não têm sabor. Tal como o arroz-doce sem canela. Um bom tempero aguça o engenho.

 

 - Preciso de uma pimenteira...

-  Hã !!??

 

Embora o meu segmento fonético de grandioso espanto não tenha contribuído para a deterioração da conversa, senti que foi devolvido com uma momumental estranheza. O contexto nunca estorvou o entendimento de horas e dias de palestra sem interregno. Raríssimas vezes se exigiu propósito. Diz-se e pronto. O contorno pode muito bem chegar depois ou nem chegar. Mas uma pimenteira? Ali, misturada com canela, arroz e café? Claro que há gostos para tudo. Café com pimenta? Talvez. Só que não lhe sabia tamanha singularidade.

 

- Vamos!

 

E eu fui. Com a ténue sensação que ia à procura da dita. Há muitos séculos que o mundo ocidental vive obcecado pelos produtos vindos do Oriente, é uma verdade histórica. Logo é mesmo verdade. Creio que as especiarias vinham de terras nunca vistas e onde dificilmente se podia chegar, por conseguinte tão desejáveis. Parece, também, que nenhuma outra rota comercial colocou em risco tantas vidas e nações, nem desencadeou tantas guerras e descobertas. Não me tinha passado pela cabeça correr perigos escusados. Nem sequer estava interessada no assunto. Cheirava-me a uma anacrónica teimosia.   

 

Por outro lado, não me apetecia analisar globalizações, nem a modernidade do mundo globalizado, nem discutir o papel das especiarias na génese da coisa. A história está mal contada. Cheia de dramas. Apimentada por exotismos vindos dos confins da terra. E já foi há tanto tempo! De carro não seria fácil. Pelos pneus e pelo preço da gasolina. Outro condimento bem apimentado. Iria a casa? Há sempre pimenta em casa. Branca e preta. Bagas coloridas para o bife. Moídas em moinhos de roscar.

 

Seria? Não era sábado?

 

Pensamentos errados. Idiotas. Ignorantes. E falava-se disto e daquilo e mais daquele outro assunto do dia anterior. E ríamos. E falávamos. Pimenteira? Uma peça desajustada. Por mais que me esforçasse não encaixava. Pimenteira? Que raio é uma pimenteira?

 

- Hã!!!!! Não sabes?

- Não…

 

Humilhação. Vexame. Vergonha. Deveria saber? E numa excessiva tranquilidade apimentada pelo prazer de acentuar a minha ignorância. Explicou. Com muita calma. É uma árvore. Tem casca lisa e acinzentada, folhas, flores e frutos. Elementar. Básico. Que ultraje! A sua madeira é própria para o fabrico de bengalas. As flores são proveitosas para a produção de mel e as árvores dão sombra. São lindas cercas vivas. Um ornamento admirável. O pó resultante da trituração do grão é a pimenta…

 

- Ah! Como os grãos do café?

- Pois…

 

E eu que nunca tinha pensado no assunto. Distracção imperdoável. Se calhar julgavas que a pimenta vinha do supermercado. Troça. Rimos.

 

- O café vem! Não vem?

 

E dei por mim a pensar que, cada vez mais, se perde a noção da origem das coisas. Que as naturais são verdadeiras. E que estudar etiologia deve ser uma enorme chatice.

 

 

(Fotografia da Internet)

09
Mai08

ao café da manhã - pelo país

Paola

h Não desistimos! 

 

Entrei, sentei-me e pedi um café. Não queria absolutamente mais nada. Comigo, à mesa, um  sono que não se extinguia. A má disposição manifestava-se no meu rosto, nos meus gestos, nos meus silêncios. Que me importava se a filha da dona do café tinha iniciado o seu estágio; se o carro da vizinha estava mal estacionado; se a outra ia passar o fim-de-semana à terra ou se o Benfica  jogava com o Vitória de Setúbal ou se seria o último jogo do Rui Costa. O meu sono impedia qualquer tentativa de sociabilização. Nem pensar. Eu precisava urgentemente de um café. Sem açúcar, como habitualmente. Prescindia da conversa da treta.

 

Exigia-se uma conversa afável, que agradasse aos meus interlocutores. O silêncio seria incómodo. Havia que jogar o “pagas tu, pago eu”. Igualmente serviria o "amanhã sou eu a pagar". Impunha-se uma boa dose de perseverança para aguardar que a senhora empregada acabasse o rol das moléstias da sogra. Não tinha defesa. Inábil para engendrar a melhor estratégia. Ainda não tinha tomado café...

 

Choquei de frente com a minha matinal angústia. Entrei no café com cara de poucos amigos, o que nem é de todo mentira.

 

Inabalável, no meu objectivo. Entrar, sentar, tomar um café, sair. Coloquei as moedas sobre a mesa de modao a não exigirem troco. Em silêncio! Nada de amena cavaqueira, de gargalhadas circunstanciais.

 

Ao balcão serviam-se diálogos, exprimiam-se emoções. De pergunta em pergunta, chegavam às respostas. Às suas.  Era cedo de mais e eu tinha sono. Mas elas procuravam chegar à prova da existência de verdades absolutas, numa tortura verbal muito cartesiana. E eu sorvia o café na certeza de que tinha sono logo existia. 

 

E elas não se calavam. O governo fechou maternidades. O governo encerrou centros de saúde. O governo cerrou hospitais. A ministra fecha escolas? A escola? E o meu filho? Pois, e a minha? Não cabem todos. São muitos, alunos, professores... A ministra trata-os com se fossem gado. Os miúdos não têm condições. E a conversa seguia animada. O jogo jogava-se entre a pergunta e a resposta. De vez em quando o exemplo.

 

Ouvia. A conversa passou a ter algum interesse para mim. Afinal, já bebera o café.

 

Agora passam todos? De que serve estudar se ninguém reprova? Coitado do meu filho! Sempre bom aluno... Que injustiça! Todos passam. Estudar para quê?

 

Não concorda, professora? Era comigo! Senti o chão a tremer! Um desnivelamento, um mosaico partido pela certa. Uns segundos em que deixei de saber se era pequena ou grande. Um momento em que errado e certo são sinónimos. Um instante raro em que acontece o eclipse da razão, pelo instinto... Tinha sido descoberta. Sorri... Levantei-me, dirigi-me à porta. Voltei a cabeça,  olhei para elas:

 

 - O seu filho consegue. O país é que não sei...

 

Não esperei pela resposta. Tinha sono. O melhor era fechar a porta... Ningém fecha a deles?

 

(imagem de Concurseiros)

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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