Ai, quem me dera correr para lá. E chegar! Depois, rebolava e ria à gargalhada. Calava-me. Para ouvir os piscos a voar. E invejar-lhes a beleza da cor. A magia da voz. A afinação dos trinados na frescura da tarde. Tão tarde! O domínio apenas existe no nevoeiro da minha visão. Sobram vulcões de urbanidade de alicerces construídos. Os piscos aborrecem-se com os rumores das betoneiras.
Ai, quem me dera estar lá. E ficar! Saltitava de flor em flor. Escolhia-as pela cor. Sentava-me. Por estranhar efemeridade. E abençoar-lhes a fragrância. O apego do caule. A verdade do viço na quietude da manhã. Tão cedo! Agora, as pétalas de cetim perduram pobremente no tacto dos meus dedos. Permanecem chãos de papoilas que eu matizo, se me importuno. Eu aborreço-me com os alvoroços dos jardins.
E agora que não estou. Eu sei! Sempre que chovia, eram as papoilas que me abrigavam. Na fragilidade das varetas. No agasalho do pano que olhava para a chuva. Para lhe descobrir o destino. A água esquecia-me e dirigia-se abundantemente para a raiz. Sustento. Eu apenas a honrava. Hoje enalteço-a. Nua no desassossego quente do Sol. Está escuro e eu olho para lá. E percebo porque tanto gosto da chuva… e de guarda-chuvas vermelhos.
As brincadeiras dos meninos e das meninas do meu país acontecem no 2.º andar, Frente, de um imóvel situado por aí. Numa cidade grande ou pequena, tanto faz. Entretêm-se nos infantários desde as sete da manhã. Os mais crescidos só brincam aos intervalos. Em recreios de mosaicos. Poucos em chão empoeirado e lamacento. Uns e outros não têm condições. Os pais vão recolhê-los tarde. O tempo é pouco e gasta-se no banho e no jantar. Ficam-se a dever diálogos, partilhas e afagos. Os mais crescidos consolam-se com a televisão que está no quarto. E modernizam recados pela Internet. Até tarde. Muito tarde. No outro dia chegam à escola com a cabeça a dormir e com os dedos cansados de tanto escrever. Palavras encriptadas. Erros caligráficos. Abreviaturas inventadas. Estrangeirismos desnecessários. Mas escrevem e dialogam. Trocam afectos. Tudo à distância. Tudo filtrado por um monitor TFT. Tudo tecnologia de ponta. No quarto ao lado, os pais dormem um sono estafado e moído de anos de trabalho. Não dão por nada. Sonham que os meninos estão a dormir. Profundamente. E mesmo ali, dentro de casa, eles correm perigos estúpidos. Porque acauteláveis.
Os meninos do meu país brincam e conversam no quarto. Ou na rua. Até tarde. Tanto uns como outros não sabem que a vida é astuciosa. Que há pessoas sem escrúpulos. E eles são incautos. Mas hábeis a manobrar tecnologias. E fazem perguntas que os pais não escutam, por isso não respondem. Adormeceram sem tempo para dormir.
Os meninos da minha terra brincam na relva do jardim, convencidos que estão a jogar às escondidas numa seara de milho. Esticam-se em argolas e correntes persuadidos que estão a trepar às árvores. Olham para o lago com patos de aviário, como se eles próprios nadassem no ribeiro da aldeia da avó. Apavoram-se se um gafanhoto chega primeiro que eles ao escorrega. Gritam atormentados com a presença de uma libelinha. E garantem que são bichos esquisitos. Horrendos. Ferozes. E os bichinhos abalam espavoridos, sem compreender tamanha histeria. E vão contar aos outros animais que viram uns bichos com costumes requintados a berrar no jardim.
Os meninos da minha terra não têm chão para brincar. O alcatrão é negro e malcheiroso, mas eles gostam. A terra não, que suja. É lama e pó. E ervas e bichos. E árvores e flores. E frutos e céu.Choveu pouco, mas o cheiro da terra molhada provoca-lhes enjoos. O cheiro a hortelã, a orégãos e a coentros são fedores. Por isso, escrevem mensagens e usam a Internet para descobrir como é uma couve portuguesa.
E ao fundo da rua, onde existia uma horta com uma nespereira generosa, há buracos. Valas abertas à espera de alicerces. Amanhã, as nêsperas são janelas com aros cromados e os cortinados esvoaçam afugentando os pardais.
Lá dentro, indiferente ao vento e às borboletas, um garoto joga com uma bola virtual. Num jogo fantasiado. Com jogadores a fingir. Ao lado, pacotes de batatas fritas amontoam-se vazios.
O pai nunca o levou ao futebol. Não tem tempo. Na televisão da sala, a notícia sabe a calamidade nacional. E ele não percebe o motivo do alvoroço. Nem a causa da obesidade infantil.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]