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ponto de admiração

ponto de admiração

27
Out08

confidenciar

Paola

                       da Internet

Agora que já nos conhecemos melhor, vou confidenciar uma coisa. Tenho para mim, provavelmente nem é verdade, que tenho bom gosto. Apenas e só porque gosto e pronto. Nem creio que seja indispensável mais nada. Nunca aceitei desculpas e narrativas fantásticas para justificar os gostos. A peculiaridade de cada opção é um traço de cada um de nós. São estes riscos que nos estruturam e assinalam, no quadro da vida, a individualidade humana. Veja-se o caso das ovelhas. Até balem com a mesma cadência. A uma só voz. Sou pela diferença e ponto final. Recuso gregarismos ovinos e outros que tais. Carneiro não conta, que nasci em Abril.

 
Agora que já nos conhecemos melhor, vou dizer-vos que tenho gostos e desgostos. Plurais e muito individuais. Outros não. Tão banais que toda a gente tem. Nem me importo, nem vou suicidar-me no cruzamento do caminho para onde convergem sabores e paladares tão iguais. Ter gosto é admirável. E quando o podemos oferecer como uma oração à liberdade, ainda melhor. Mesmo muito ecléticos. Tão contraditórios que não entendíveis. Os meus são assim. Há outros que não. Sou pela fidelização a crenças universais. E muito pessoais.
 
Agora que já nos conhecemos melhor, vou assumir que é desacertado escarnecer de predilecções particulares. É falta de educação e revela incivilidade. Eu sei que ter bom gosto é melhor que mau gosto, mas mau gosto é melhor que gosto nenhum. Concordemos! Apesar de ser certo que nem todos o podem ter. Só que isso não vem a propósito. Nem sei por que me lembrei. A padronização do gosto é castradora. Eis uma excelente razão para ter gosto. O meu. O que eu não gosto mesmo é do bom gosto. Nem de quem tem bom gosto, convencido que o adjectivo é superior a outro em boa qualidade. Eu falei de qualidade, falei?
 
Agora que já nos conhecemos melhor, vou declarar que gosto exponencialmente de música. De toda não, só da que gosto. Com o meu gosto muito eclético. Naturalmente condenado à falta de originalidade e de coesão. Gosto de vozes que me acariciem o coração. De músicas que aferrolhem os meus olhos e me conduzam por aí. De textos que me acicatam o corpo. Sem qualquer explicação ou fundamentação musical.
 
Agora que já nos conhecemos melhor, vou anunciar que gosto demasiado de música em francês. Pela semelhança de emoções, pela sonoridade da língua, apesar do accent e do ritmo. No entanto, sempre que a ouço e preciso dela todos os dias, a melancolia embaça a minha voz. Exactamente como quando oiço o luso fado… e concluo que a responsabilidade é dos romanos que reconciliaram as línguas. E não satisfeitos com a conquista,  as emoções e os sentimentos também. 
 
Agora que já nos conhecemos, não me digam que é pirosice e muito foleiro... E até gosto do bouledogue francês. Eventualmete, um dos cães mais feios ao cimo da terra. Tem meiguice no olhar e ladra como os outros. Gosto do ritmo e da harmoniosa cadência da linguagem. Caniche não, pela sofisticação.

 

 

24
Jun08

na peneira

Paola

l   canções de embalar

 

Cheguei a casa com o corpo gordo de sorrisos. Restos de brincadeiras ameninadas ao intervalo. No princípio e no fim da escola.Tinha saído ainda o sol se espreguiçava no leito vestido de azul celeste. As galinhas dormitavam acocoradas nos fenos amarelados mudados diariamente. Outras sossegavam equilibradas no poleiro em poses acrobáticas. De vez em quando cacarejavam maledicências e blasfémias frívolas. É que o galo já lhes apregoara a manhã. Que elas recusavam. O galo era o protagonista do amanhecer. Ao resplandecer do dia, cantava para acordar quem teimava em dormir e sonhar que o mundo era feito de sapos. Ali mandava ele.

 

Excepto uma que tinha doze pintos para zelar. Chocara-os com enternecimento e orgulho comum à maioria das mães. Sem ter a certeza que todos os ovos lhe pertenciam. Isso era um facto que não lhe interessava. A maternal determinação libertava-a de tais ninharias. Queria parir e pronto. Imaginava-se a maior mãe do mundo. Mesmo que o seu mundo estivesse circunscrito por cercas de arame enleado nos arbustos cortados em forma de presídio. Nada mais lhe importava do que cumprir-se na maternidade. A galinha é uma enorme mãe. Adoptiva ou não. Ser mãe de ovos de outras galinhas não a preocupava. Seriam também seus filhos. Esperou pacientemente durante vinte e um dias. Não perguntava de que barriga chegavam, só que coubessem debaixo o seu corpo. Para os aquecer. Para os proteger. E discorreu que todos os filhos nascem do coração.

 

Pintainhos dependentes. Joviais. Áureos. Buliçosos. As mães nunca dormem descansadas. Ela também não. Porque era mãe. Inefável instante. Os bicos pipiaram a natureza a ampliar-se. As cascas dos ovos rumorejaram vida. A galinha rendia graças ao céu ao mesmo tempo que suplicava ao galo que se calasse. Não fossem eles acordar.

 

Muito de mansinho, harmonioso e doce, um canto embaraçava o perplexo galo.

 

Dorme, dorme

Meu pintainho adorado

Dorme, dorme

Meu filhinho guardado

Ó, i, ó ai!

 

Faz ó-ó meu lindinho

Que te quero muito bem

Dorme meu filhinho

Tua penugem também

 Ó, i, ó ai!

 

Se fosses um passarinho

Até poderias abalar

Assim voas baixinho

Mas aprendes a amar

Ó, i, ó ai!

 

Dorme, dorme

Meu pintainho adorado

Dorme, dorme

Meu filhinho guardado

Ó, i, ó ai!

 
A minha mãe acorda cedo. Mas não sabia canções de embalar. Nem tinha tempo. Nem voz. Já tinha despachado o meu pai. Prepara-lhe arroz de tomate e sardinhas fritas. Ele gostava. Eu também. Ela nem por isso. Chegara a minha vez. Pequeno-almoço tomado, mãos e dentes lavados e vamos lá vestir. Despacha-te! Gritava sempre comigo, mesmo quando o tempo sobrava. Isso não! Veste o amarelo. E eu vestia. O do laço atrás. E eu atava e desatava a fita que me atrapalhava. Não te sujes! Claro que não, mãe. Uma criança nunca se suja de propósito.

 

E lá fui. Carregada de livros e de recomendações. Agora era a vez do caminho. Não aceites boleia de ninguém! Tem juízo. Eu até me considerava uma menina atinada. Logo, para que servia aquela oratória todos os dias?

 

Um dia contou-me que eu dormia num berço. Que o embalava em movimentos ritmados e cadenciados. Enternecimento e enlevo. Carinho e amor. E cantava.

 

Eu estava na peneira

Eu estava peneirando

Eu estava na peneira

Eu estava namorando

 

Ó, i, ó ai!

 

Eu olhava para ela. Depois sorria e adormecia. E sonhava que a minha mãe era mesmo mãe-galinha…

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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