Gosto de caracóis. Porque têm cara. Colo e muito sol. E com eles chega as mãos da minha mãe. Que persistência ela punha para que os meus fossem os mais penteados e arrumados da sala. Depois, ao domingo, saímos em fila pelo carreiro das salinas. Regressávamos a casa. E era o meu pai que os preparava. Nós comíamo-los num abraço profundo. Eu sei que não devia. Talvez, nem tenho bem a certeza. Isto de comer animais dita apreciações divergentes. Confesso que não tenho culpa que a palavra me encha a boca de orégãos. Muito menos que os bichos não revelem habilidades físicas excecionais e que fiquem rapidamente afastados de qualquer êxito desportivo. Incautos e ingénuos acreditam que o Sol nasce para todos. Quem lhes terá dito que deveriam pôr os "cornos" ao abrigo do dito? Não é um assunto pacífico. Não é... E os caracóis têm cornos? Apêndices, antenas... Vai dar no mesmo. E são ranhosos! Um pires de caracóis com duas cervejas, por favor.
Porque hoje é domingo, só me apetece parar. Pular, saltar e conjugar o verbo espreguiçar. Eu, tu, ele, ela, nós. De vós não quero saber. E deles nem pensar. Fazem muito barulho e não quero acordar. Ou não! Vou imitar o caracol. Ponho os corninhos ao Sol serenamente. Durmo velozmente. Como lentamente. Mexo-me calmamente. Não faço nada apressadamente. E aguardo paulatinamente que acorde amanhã. Tudo excessivamente devagar. Tudo vou adiar. Tranquilamente.E se me lembar, não dou corda ao relógio. Para que ele não se atreva a falar. Depois, subirei cada degrau, da minha escada, vagarosamente. Não os fizeram para eu descansar? Não? Então, vou subir muito devagar!
E a notícia é de última hora. O caracol, que tentou subir apressadamente a parede de sua casa, sofreu um acidente cardiovascular. Foi assistido no local e transportado de urgência para o hospital mais próximo. Chegou já sem vida, vítima de paragem cardíaca ocorrida durante o transporte, informaram pausadamente. O funeral do irrequieto gastrópode sairá daqui para a sua terra natal. Espera-se a presença de conhecidas figuras públicas.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]