ver o rio [ ao colo da minha mãe]
"Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele."
Alberto Caeiro
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"Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele."
Alberto Caeiro
Eu sigo pelo passeio do lado direito. E o rapaz continua a pontapear a bola. Agride-a com carinho. Com os ténis cansados de tanto rematar. Goleia a equipa adversária. Ergue a taça. Ouve os aplausos e o bruaá da multidão que entoa cânticos de vitória. Marcou o golo do triunfo. Atira-se para o chão e chora. Lágrimas com gosto a êxito. Que é história. Que se faz narrativa ao serão. Ninguém o ouve, porque recolhem atestados de transportes. Desprovidos de tempo para o sono. Sem invenções para aprontar o jantar. Com desejo de dormir e, talvez, sonhar que o dia seguinte acordará domingo ou feriado.Tanto faz. Que bom que ao domingo não houvesse nada para fazer.
- O primeiro dia da semana, o domingo, é dia descanso…
- Descanso, não, pai! Irrompeu logo o rapaz. A Joana trabalha na loja no centro comercial. O fim-de-semana dela é a quarta e a quinta! Ela não tem domingo, pai!
- Pois…
Esperam uma semana que seja domingo. Vão à missa. Arquitectam um almoço com todos à mesa. Depois, escapam-se para tomar café no senhor António. E cavaqueiam até meio da tarde. Na memória guardam as novidades da rua. Segredinhos de vizinhança. Intensos e banais para que durem até ao domingo seguinte. É sempre assim aos domingos. Às vezes, ainda lhes sobra tempo para ir até ao centro comercial. O miúdo também vai. Só que contrariado. Preferia que lhe vissem o jeito para o futebol. Que o aplaudissem nas vitórias.
- Vais ver o meu jogo?
- Hoje é domingo. Vou descansar. Aliviar a fadiga.
- Vem!
- Vais jogar sozinho. Não tens equipa!
- Pois não…
Ao domingo de manhã costumam rir à gargalhada. Para enxotar os espíritos. O mau-olhado que a segunda-feira tem. À tarde, desenham projectos para concretizar na fila do autocarro. E não riem. Ainda estão estafados.
O garoto e a bola concretizam-se nas imagens repetidas na televisão. Com destaque a cada meia hora. Em horário nobre. Como se a nobreza se atormentasse com a publicidade. Têm jardins com plantas sempre verdes para guarnecer os jardins e espelhos de água. E palácios e palacetes ajoelhados na areia da praia com janelas a espreitar o mar. Os brasões não jogam à bola na praceta da rua de um bairro sem insígnias. Estranham o muro branco da casa das nespereiras. Apoiam-se no esqui completo (botas e bastões) e escorregam nos relvados cobertos com neve.
O Ti João tem uma bengala. Foi uma vizinha que lha deu. Há pessoas boas, comentava. Aquela tem mesmo ar de boa pessoa, indicava com o dedo e sorria. Quase que corava. Eu pressenti-lhe o rubor. E não se enganava. Corriam rumores que ele conseguia farejar gente boa à distância. Mesmo no lado de lá da rua. O homem amparava-se naquele pedaço de pau arqueado. Ainda se lhe percebia o brio de madeira nobre e as marcas de uma qualquer incrustação no punho. Provavelmente restos de uma espécie francesa. Com um cabo de prata. Sobras de êxodos clandestinos depois legalizados. Um generoso utensílio a fornecer apoio a quem precisa. Outras vezes artificiosas. Inúteis. Há homens que usam a bengala como sinal de distinção social. Uma bengala como sinal distintivo. Uma bengala que não transformava o Ti João num jovem moderno e airoso. Mas ele sonhava e imaginava que sim.
E jogam com as suas ilusões de criança. Um ainda é. O outro já foi.
O rapaz remata sozinho. Para um guarda-redes transparente. O Ti João confiava que teria consulta no dia seguinte. Desde que fosse cedo. Próximo da madrugada.
Os dois estão desacompanhados. E fantasiam. Inspiram audácias. Que se cumpririam no segundo dia da semana. Para alívio das suas tenções.
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