A avenida estendia-se na horizontal. Ondulava aqui e ali. Traições desnecessárias para quem anda sempre no passeio. No lado de cá.
Uma aceleração. Outro passado alargado à medida da pressa que não se via. Um grito de criança a reclamar o tempo. Horas que não lhe foram dadas para suicidar o sono que lhe atravancava a vontade. Travagens aflitas nas passadeiras movediças que conduziam para o lado de lá. Uma eufórica buzinadela cumprimentava caminheiros despreocupados. Acenos de fim-de-semana. Desejos expressos no empedrado. Uns subiam, outros desciam. Na ânsia de inventar um domingo que fosse outro dia. Talvez domingo.
Nos sacos, viajavam propícias pescarias. Restos de abates carniceiros. Pedaços de hortas e pomares despojados dos frutos. Raízes que tudo fariam para crescer no chão. Penduradas na terra. Trapos e farrapos roubados ao pregão. Carteiras gordas de tempo. E de mês. Bolorentas de esperança. Filas de alívios e dores. À porta da farmácia. A meio da avenida. Do lado de cá.
As bocas repetiam-se na mesma fome. Os corpos rezavam as mesmas pisadelas. As crianças brincavam, desinteressadas das nuvens que pressentiam a chuva que não acontecia. Ali, na avenida.Olhavam para cima, sempre que passava um avião. E ensaiavam a partida. Encetavam a fuga pelo ar. Na terra, a avenida prolongava-se no limite do interrogatório. Os carros chiavam travagens exaltadas. E as crianças insistiam em crescer na avenida. Tanto! O assunto da conversa não era outro. Aquele. De ontem a hoje.
No congestionamento da conversa, a dor alastrou. O corpo piorou. E o silêncio intentou a caminhada. De cá para lá. Pela avenida. Destravou!
Comi. Porque ontem foi sábado. Porque me apetece sempre aos sábados. Porque sim. A gulodice soube a arroz-doce. Da dona Perpétua, claro! Há hábitos que não gostam de ser contrariados. Perdem o sabor e o aroma. Muito tempo no frigorífico acabam por secar.
Fiz compras domésticas, comezinhas. De comer. Sim, porque um prato de serviço lectivo, bem acompanhado por umas boas reuniões gerais e regada com conversas furtadas aos intervalos e doces sobremesas não lectivas, desnutriu-me a despensa. A míngua já era evidente.
Comprei livros. Um vício puro e simples, não uma doença congénita. Espero que transmissível. Um é especial pelas memórias que contém. Pela singularidade da sua autora. Conhecia-a menina, muito menina. Leiam-se as Mafaldisses - crónicas sobre rodase descubra-se a vida feita determinação.
Entenda-se que «a solidariedade constitui-se num dos mais fundamentais princípios da vida social. É um valor que se atribui aos outros e à comunidade que reúne os homens. Este valor traduz-se em actos concretos como partilhar, ajudar, aceitar, integrar, cuidar e preocupar-se. Logo, quem o faz, deveria fazê-lo com a mesma naturalidade com que esfrega os olhos para o dia todas as manhãs.» Ao, ler este livro de crónicas, lembrei-me das rampas em cimento que foram colocadas na sala quatro e na oito e …
Falei, falei e disse. Também ouvi. É costume dizer coisas ao sábado. Não é que resolva algum problema, mas que fico mais aliviada, lá isso fico. São partilhas, confidências, actualização de dados introduzidos durante a semana. Nos outros dias não há tempo. Nem lugar. Nem condições atmosféricas favoráveis.
Ri. Rimos. Enfim, ninguém é demasiado velho para rir, nem para chorar. Ri tanto que as lágrimas se intrometiam entre o ver e o ler. Impossível. Por isso, ainda gargalhávamos com mais intensidade. Caricatas, estouvadas, ridículas terá pensado quem nos viu e não compreendeu que só estávamos a rir. E que bem faz rir. Quem não ri é triste. Não entende. Não riem aqueles que não tiraram férias de si próprios. Há tanta coisa que me faz rir. Coisas despretensiosas. Desmedidamente simples. Não gosto de rir de coisas sérias. Fico sem vontade! Mas rio-me de mim própria. Assim, divirto-me sempre.
Chorava a rir. Os olhos fechavam-se embaraçados pela situação. Particularmente com o peso das lágrimas. Minúcias. Prazeres repentinos. Partilhados. Então, como ler a legenda da embalagem? Conhecer os ingredientes? Por uma questão de segurança alimentar era importante que o fizesse. Mas as lágrimas não permitiam. O corpo cedia ao compasso das gargalhadas. Num instante dominado, mal controlado, consegui dizer uma espécie de frase. Uma aliteração desarticulada, e nada intencional, de não sei quantos “lês”. Soou a chinês, japonês. Não sei, são línguas que, de todo, desconheço. Que estranhámos.
- Lê lá ali!
- Lêláli?Lêláli...
E ali, rigorosamente na padaria, junto à prateleira do pão embalado. Por causa da Broa de Batata, chorámos a rir. Nem de Milho, nem de Avintes e muito menos castelar. Uma gargalhada que nos acompanhou na viagem de regresso. Não comprámos o pão, mas ficámos com a memória. Um dia, não muito distante, uma outra amiga assegurava-me que “são partilhas de quem tem memórias. É isso também a vida.”
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]