casar
Quem quer, quem quer, casar com a Carochinha que é vaidosa mas bonitinha? Carochinha sabe que à janela pode voar. E que pela janela entram sonhos. E de imediato, uma enfiada de desajustados machos se apruma. Ninguém serve. Nem o burro, por ter feia voz. A razão pela qual as vozes de burro não chegam ao céu? Bonitinha vá que não vá. Mas Carocha? A minha tia Isaura vive entre o rio e o mar. Pelo meio tem a terra. A pele da minha tia tisnou porque o Sol a matiza todas as manhãs. A viuvez traja-a de negro. É por isso que lhe chamam Carocha. E ela abomina. Ri e esbraceja ao mesmo tempo que grita que não pertence a uma família que desconhece. Cujo nome nem consegue articular por tão complicado. Ninguém repara que a pele da minha tia Isaura é uma couraça que lhe permite viver em harmonia com o espaço. E assim poder recusar epítetos inóspitos.
E os insectos não falam. E muito menos de casamentos. De revistas rosadas e muitos vestidos costurados com glamour. De facto, é bem bonitinha. Elegante no desfraldar das suas asitas. Estonteante nos movimentos arredondados. Mas vaidosa. O que não lhe fica muito bem, diz-se. Ser vaidoso é bom. A vaidade alimenta-se de razões e causas. Sem elas não existiria. De orgulhos e admirações. De fascínios e afeições. A Carochinha também. E o bicho não é um pavão. Que acumula nas penas excessos de presunção. Depois, desfila na capoeira como num palco vermelho. E sonha-se beleza aclamada. Sem saber que a vaidade não se diz sobranceria. Nem pisadelas. O galináceo de melodiosa plumagem não leu Camões. Nem sabe ler, o pobre. Mas é emproado. Se soubesse descobria uma falsa e enganadora satisfação. Um fraudulento gosto. E o coitado nem percebe a fama. Outros tempos. A Carochinha sabe. Que anda de livro em livro. De boca em boca e continua à janela. E foi o desgraçado do João, feio que nem um rato, que disse que sim. Impiedades da natureza. É certo e sabido que os dois nunca se iriam entender. O fracasso impôs-se de imediato. E antes que o divórcio sobreviesse, o roedor desprevenido desapareceu da história. Horripilante final. Mas tinha que ser. A adversidade solucionou-se no caldeirão. E a minha avó contava a história da pobre Carochinha que casou com o João Ratão. Vaidosa por sabê-la de cor. Vaidosa porque eu a escutava. Vaidosa por não perceber que a infeliz barata foi rata depois do casamento. Vaidosa por não saber que a vaidade é um bem congénito. Que em equilíbrio é saudável. Para o corpo e para a mente. O rato não sabia. Foi castigado. Excessivo trambolhão.
A Carochinha chorou. Lágrimas que registou e enviou para o pai que estava em Lisboa. Sem saber ler nem escrever. Mas soube que ele não a leu. Nunca recebeu a confirmação de leitura. E a Carochinha chora à janela. Quem quer, quem quer, ajudar Carochinha que é apenas viuvinha? Ninguém lhe prestou auxílio. Apenas passou um jovem que olhou para ela e foi-se embora. E ao serão, a minha tia Isaura conta, a história do João Ratão. Diz que o infernal episódio até foi merecido. Que no caldeirão ferveram a vaidade, a imprudência e a gulodice. Acrescenta que a violência da história é real, todavia normal. Porque o João é um pequeno mamífero roedor da família dos murídeos. A Carochinha um insecto coleóptero. As pessoas é que são pessoas. E uma história infantil é só isso. Mais nada. E eu digo-lhe que não me parece bem que o desastrado do rato tenha tido uma morte tão horrenda. Ela sorriu e foi deitar-se. Muito tranquila. E ordenou que eu dormisse também.
fotografia de João Palmela