A avenida estendia-se na horizontal. Ondulava aqui e ali. Traições desnecessárias para quem anda sempre no passeio. No lado de cá.
Uma aceleração. Outro passado alargado à medida da pressa que não se via. Um grito de criança a reclamar o tempo. Horas que não lhe foram dadas para suicidar o sono que lhe atravancava a vontade. Travagens aflitas nas passadeiras movediças que conduziam para o lado de lá. Uma eufórica buzinadela cumprimentava caminheiros despreocupados. Acenos de fim-de-semana. Desejos expressos no empedrado. Uns subiam, outros desciam. Na ânsia de inventar um domingo que fosse outro dia. Talvez domingo.
Nos sacos, viajavam propícias pescarias. Restos de abates carniceiros. Pedaços de hortas e pomares despojados dos frutos. Raízes que tudo fariam para crescer no chão. Penduradas na terra. Trapos e farrapos roubados ao pregão. Carteiras gordas de tempo. E de mês. Bolorentas de esperança. Filas de alívios e dores. À porta da farmácia. A meio da avenida. Do lado de cá.
As bocas repetiam-se na mesma fome. Os corpos rezavam as mesmas pisadelas. As crianças brincavam, desinteressadas das nuvens que pressentiam a chuva que não acontecia. Ali, na avenida.Olhavam para cima, sempre que passava um avião. E ensaiavam a partida. Encetavam a fuga pelo ar. Na terra, a avenida prolongava-se no limite do interrogatório. Os carros chiavam travagens exaltadas. E as crianças insistiam em crescer na avenida. Tanto! O assunto da conversa não era outro. Aquele. De ontem a hoje.
No congestionamento da conversa, a dor alastrou. O corpo piorou. E o silêncio intentou a caminhada. De cá para lá. Pela avenida. Destravou!
Desci as escadas a correr no silêncio dos meus passos… apenas os degraus roncavam espasmos de dor provocados pela corrosão do tempo e pela distracção derrotada… pelo aguçar dos sentidos a cada fenda vibrada… Estreitos para os meus pés, chiavam espantos como clarins ao alvorecer da batalha, para anunciar a manhã. As passadas desmaiavam pelas tábuas enegrecidas… sem corrimão. E era noite, mais quarenta e dois degraus… um salto e um vazio.
Desci as escadas sem vivalma para bendizer… Persuadida de que já não havia ninguém com quem pudesse falar… nas escadas comuns... como converso comigo própria…
O vento chicoteava o rosto como quem rouba um beijo. E as mãos como se estivesse a trabalhar. De quando em vez, agitava-se. Enrolava-se com prazer. Ofegava palavras vermelhas de paixão. Percebia-se no seu tocar. Depois, zangava-se. Afecto torvelinho num concerto perturbado. E divulgava-se na ladeira sem se importar com as pegadas que deixava no asfalto. Bradava que os caminhos eram feitos para caminhar e as ladeiras para ladear. Para baixo e para cima, sempre a rodopiar. E praguejava muito. Espumava gestos enfurecidos. No seu coração remoinhavam predadores que mordiam a solidão. E subia…
O Sol estendia-se ao comprido. Numa nesga da calçada. Sorria nas portas que encontrava. Esticava os dedos e empurrava o vento que não sossegava. Amornava a encosta de alcatrão, calçada de pedras cinzentas. Está frio! Gritava-se lá do alto. Pois está… ressoava do outro lado. E decidiram sentar-se a meio da ladeira. No exacto ponto onde o Sol se empoleirava e o vento não chegava. Vamos tricotar palavras. Vamos? A outra aceitou.
E tanto que ladearam as palavras. Esgotaram-nas antes do vento. Durante o Sol. Ela afiançava que sim. Que tinha a certeza. Mas a outra duvidava. Que nunca tinha ouvido falar. Que não deveria ser assim. Verdade! Afiançava na certeza de quem lho tinha dito. E a outra acreditava. Que bem se estava ao sol. Lamentava que o vento dificultasse o tricotar. Perguntava uma se tinha visto. Ela vira e até chorara. Garantia-lhe a beleza da emoção. Nem tinha podido. Essa era a sua intenção. Apenas não foi capaz. Adormecera estoirada, logo que se sentara no sofá. Queixava-se. Que gostava tanto, que nunca perdia um. Que aborrecimento! Não se preocupasse que ela contava. Não perdera pitada. E a narrativa era interrompida por desabafos frios. Que o vento é que estragava tudo. É claro que o vento ouvia e não gostava. Informava que tinha de ir, ao mesmo tempo que exigia companhia. Ela respondia-lhe que não. Que já era tarde. Que tinha coisas para acabar. E o marido até planeava jantar. Credo! Antes de almoço a confeccionar o jantar. Que assim se cansava e que a culpa não era da ladeira. E travaram-se de razões. Uma porque era cedo, a outra assegurava o atraso. Que a vida era um enfado. Logo retomaram o assunto. Que assim não podia ser. Pois não! Mas nada podiam mudar. Não, não tinha ouvido nada. Foi uma desgraça. Em pleno dia. À hora do Sol. Se não lho tivessem afiançado, nem acreditava. Bandidos. Não fazem nada! E a outra, conhecedora do assunto, aprontou-se a explicar que a culpa era deles. Davam cabo disto tudo. Que nunca se vira coisa assim. Excediam-se nas palavras e multiplicavam os gestos. Que ninguém fazia nada, repetia. Por isso, dava sempre razão ao marido. Desenvolvia ele que o mal vinha de fora. De muito longe, embora não soubesse fielmente o lugar. E que com aquelas conversas, ela adormecia. Ele lia, nesse caso sabia. Tornava ao jantar. Que ia cozinhar isto, talvez aquilo. Não se importava. Ele que comesse o que ela fizesse. Que uma mulher não tem tempo para tudo. A lida da casa dava trabalho! Pior do que subir a ladeira.
O homem deve ter jantado. Sentaram-se no sofá descansos do trabalho. Ela dormiu vagarosamente e ele dialogou consigo. Ela ressonava palavras crochetadas ao Sol. Ele afligia-se com a escuridão do silêncio. A outra, à varanda, fumava um loquaz cigarro. Queixava-se de ter pouco saldo no telemóvel. Que a bateria estava a desaparecer. Que tinha estado na ladeira. Que trocara umas palavritas sobre aquilo. Mas sem interesse. Perguntava se já sabia. Se tinha visto até ao fim. E ria.
Eu, que não subo a ladeira, desci. Não olhei para trás e fugi dali. E só pararei junto dela. Resguardadas do vento e do Sol, esticaremos as palavras e tricotaremos tanto, mas tanto, que os dedos permanecerão entorpecidos o dia inteiro. Faremos volutear malmequeres e papoilas. Pétalas e folhas de rosas-do-deserto. As joaninhas voarão envergonhadas por não saber falar. Os gafanhotos pularão excitados pela incapacidade de correr. E as rãs chapinharão no charco, desconjuntando os juncos. Só depois é que subiremos a ladeira...
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]