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ponto de admiração

ponto de admiração

09
Nov08

acelerar

Paola

Vociferou pelas escadas todas. Para baixo, em ziguezagues. Para cima, aos trambolhões. Bateu nas portas e voltou a bramir. E desconjuntou-se num eco enfurecido. Assim como um trovão exasperado com o céu. O berro, que a porta do terceiro esquerdo vibrou, irrompeu com muita determinação e mais raiva. E tanta impossibilidade! O Rui subira os degraus numa correria desenfreada. Nos ténis carregava a urgência de quem tinha um relógio para cumprir. E o calendário amarelado, com os cantos das folhas dobrados, trespassado pelo prego. Contava os dias, incluindo sábados e domingos, e decorava a parede branca da cozinha. Também os jantares azedos e salgados pelos excessos do pai. Um homem de raras palavras e de muitas frases simples e imperativas. Com sujeito composto. Felizmente, para o Rui, o pai ainda não tinha chegado. Fora almoçar com uns amigos as sobras do último domingo de caça. Ouvira a mãe dizer à avó. Que a conversa não lhe era permitida. Ele comeu a sopa de feijão que fumegava na tigela. A sua. Gulosamente, porque tinha muita pressa. E a colher retorcia-se aflita com tanta velocidade. Partira como largam os campeões de cem metros. Sem obstáculos. Ou não. Como um Ferrari na pole position num prémio de fórmula 1. O Rui sabia-lhe o roncar do motor. Acelerava e viajava pelo mundo inteiro montado no Cavalinho Rampante. Era a cor que o fazia voar. O brilho-vermelho. O Rui pegava numa trincha e avivava-lhe a cor, de vermelho-luz. De vitórias repetidas. E ia da pista até à Lua. A sua cabecita inundava-se de carinhos vermelhos. Que achava na rua e a mãe cosia no boné de sarja vermelha.

 
- Mãe, mãe, eu vou a casa do Vítor.
- Não vais, não senhor! Daqui a nada, chega o teu pai. E que lhe digo eu? É domingo, filho.
 
Pois era. O Rui sabia-o mesmo sem olhar para o calendário comido pelo Sol alapado na parede. Cravado num prego. Aquele era o domingo que lhe faltava. O Ferrari tinha hipóteses. E o Rui tinha a certeza que o cavalinho amarelo-empinado empurraria o carro para a vitória. Tinha que ver. E exibir a bandeira aos quadradinhos que lhe dava o triunfo. Mesmo antes da corrida acabar.
 
 - Mãe, mãe, eu tenho que ir a casa do Vítor.
 
A mãe não sabia que a televisão do Vítor deixava o Rui festejar e estremecer. A sua não. A mãe negara-lhe a intenção. O Vítor, e os pais, visitavam a avó Carolina. O Rui gelou um sorriu petrificado. O sangue deixara de circular. Saiu da pista. Rodou duas vezes. Encontrou-se violentamente com o muro. Capotou e incendiou-se de imediato. E pela porta do terceiro esquerdo, um urro dorido atirou-se pelos degraus. O Vítor não o podia ter abandonado. Afinal era o seu melhor amigo. Nunca lhe indultaria a malvadez.
 
Adormeceu vencido pelas lágrimas. E lá ao fundo, no parque, as crianças brincavam. Fingiam corridas de vencer e perder. Um barquinho muito vermelhinho galopava pela água enlameada e, sentado no banco do jardim, o jornal noticiava que a Ferrari perdera a corrida. O Rui dormia derrotado também.
 
No lago, o barco era um carro que vivia sozinho num cavalo de brincar. Atrás dele está um carro que é o carro em que o cavalo veio. E o Rui sonha com um carro vermelho… Sem imaginar que aquilo são brincadeiras de gente crescida, a fingir.
 
No patamar, os brincos-de-princesa baloiçavam assustados. Há muito que não batiam a porta assim. Com tanta velocidade.
  
 
24
Ago08

sem rede

Paola

vidas desgraçadas

 

Hoje, nada de novo por aqui. Uma sexta-feira morna de Agosto. Numa manhã que teima em acordar de férias. Aqui e ali ouvem-se tristezas molhadas. Com água salgada, talvez morna. Seguramente fria. Tranquila e serena. Chora-se o regresso à balbúrdia. Ao ritmo acelerado. Ao trânsito irritado da cidade. No entanto, lá fora corre tudo mais depressa. Os chineses surpreendem-se com a lusa vagareza. Dizem que lá não é assim. Chinesices!

 

Na papelaria da esquina um homem compra o jornal. Um rapazito entra controlado pela mão do pai. Que compra outro jornal. O rapaz protesta. Exige a aquisição de uma qualquer coisa. As lágrimas e lamúrias manchavam a dicção. E exigências. E pedidos. E o progenitor à beira de um ataque de nervos. Para se tranquilizar pede ao catraio que explique. Que precise o que pretende. O miúdo, entre soluços e raivas, elucida que quer outra. Que a que ficou em casa da avó já não serve. Só lá que é uma aldeia parca em gente pequena. Agora que veio de férias, exige uma melhor. Para ser cobiçada pelos amigos. Única. Notável. Quase verdadeira. E assegura que até pode ser. Uma autêntica seria admirável. E senta-se no chão. O pai dá sinais de ceder à envergonha pública. O petiz esperneia exaltações sem calibre. E o pai diz-lhe que sim. E saem os dois. Com a promessa de satisfazer a vontade da criancinha. Os olhos que assistem brilham incrédulos. Os rostos vincam o grotesco da situação. As bocas emudecem a atónita desinteligência. As mãos controlam mutuamente um desmesurado desejo. O garoto valia uma bofetada. O pai, no mínimo, três. E já de saída, o homem esclarece. Desde pequeno que ele é assim, sabem? Sempre gostou de armas. Adora fingir que mata todos lá em casa. E os amigos. Agora teima. São crianças. Temos que lhes fazer a vontade. Coitadinhos! Ele quer uma a sério… viu numa revista de videojogos. Mas para crianças. Bom, vou à procura…

 

Na televisão, as notícias atropelam-se. Postos de abastecimento de combustíveis assaltados de madrugada. Os criminosos abalam com uma caixa multibanco de rojo. E o despiste de viatura roubada. Mais três mortos lá para o norte. Intervalo para escutar a Portuguesa em Pequim.  Depois cinco homens encapuzados, alguns falavam português, três viaturas e explosivos entram em acção. Arrombam as portas traseiras e agarram os sacos com notas. Nada de moedas. Pesam muito e não são a mesma coisa. Uma realidade nunca vista no país. Coisa de profissionais. Bem gizada. Isto de amadores tem que acabar. Pequim que o diga. E o campeão do salto chora lágrimas de total satisfação. Mas é no Norte que um ourives impede um assalto de encapuzados e armados bandidos. E sabe-se que o seu companheiro de profissão morre no Sul. Os ignóbeis acertaram-lhe mesmo. Na praia, aqui bem perto, roubam um BMW para assaltar um posto de gasolina. Uma máquina a sério! E o pobre do polícia, pronto para entregar as chaves que dão acesso a casinhas sociais, é agredido. Mais assalto, menos assalto. E acidentes. E mortos e feridos. As notícias repetem-se. O luso saltador sobe o degrau. Ao peito exibe o orgulho de ser o melhor. Enquanto por cá se fica a saber que a violência doméstica já matou mais este ano que em tempos anteriores. Não há paciência! Trinta mulheres mortas? Bestas! E como se tudo já não fosse muito, eis a mafarrica da lagartixa. Sem permissão, entra no carro e assusta condutor. O réptil provoca o acidente, gera um ferido e foge. Os humanos já não chegam? Francamente!

 

E a corrida às armas dá milhões ao estado. Uns míseros 4,2 milhões de euros em impostos. Que para uso e porte de arma é preciso pagar. A quantidade de armas ilegais é muita, confessam!

 

Desliguei o televisor. Em Pequim já não se houve o hino nacional. E o catraio da papelaria anda a ver muitos filmes. Calma! São situações pontuais. Tudo vai bem, e muito seguro, neste reino de Portugal.

 

 

Fotografia de João Palmela

14
Ago08

casar

Paola

história da carochinha

 

 

Quem quer, quem quer, casar com a Carochinha que é vaidosa mas bonitinha? Carochinha sabe que à janela pode voar. E que pela janela entram sonhos. E de imediato, uma enfiada de desajustados machos se apruma. Ninguém serve. Nem o burro, por ter feia voz. A razão pela qual as vozes de burro não chegam ao céu? Bonitinha vá que não vá. Mas Carocha? A minha tia Isaura vive entre o rio e o mar. Pelo meio tem a terra. A pele da minha tia tisnou porque o Sol a matiza todas as manhãs. A viuvez traja-a de negro. É por isso que lhe chamam Carocha. E ela abomina. Ri e esbraceja ao mesmo tempo que grita que não pertence a uma família que desconhece. Cujo nome nem consegue articular por tão complicado. Ninguém repara que a pele da minha tia Isaura é uma couraça que lhe permite viver em harmonia com o espaço. E assim poder recusar epítetos inóspitos.

 

E os insectos não falam. E muito menos de casamentos. De revistas rosadas e muitos vestidos costurados com glamour. De facto, é bem bonitinha. Elegante no desfraldar das suas asitas. Estonteante nos movimentos arredondados. Mas vaidosa. O que não lhe fica muito bem, diz-se. Ser vaidoso é bom. A vaidade alimenta-se de razões e causas. Sem elas não existiria. De orgulhos e admirações. De fascínios e afeições. A Carochinha também. E o bicho não é um pavão. Que acumula nas penas excessos de presunção. Depois, desfila na capoeira como num palco vermelho. E sonha-se beleza aclamada. Sem saber que a vaidade não se diz sobranceria. Nem pisadelas. O galináceo de melodiosa plumagem não leu Camões. Nem sabe ler, o pobre. Mas é emproado. Se soubesse descobria uma falsa e enganadora satisfação. Um fraudulento gosto. E o coitado nem percebe a fama. Outros tempos. A Carochinha sabe. Que anda de livro em livro. De boca em boca e continua à janela. E foi o desgraçado do João, feio que nem um rato, que disse que sim. Impiedades da natureza. É certo e sabido que os dois nunca se iriam entender. O fracasso impôs-se de imediato. E antes que o divórcio sobreviesse, o roedor desprevenido desapareceu da história. Horripilante final. Mas tinha que ser. A adversidade solucionou-se no caldeirão. E a minha avó contava a história da pobre Carochinha que casou com o João Ratão. Vaidosa por sabê-la de cor. Vaidosa porque eu a escutava. Vaidosa por não perceber que a infeliz barata foi rata depois do casamento. Vaidosa por não saber que a vaidade é um bem congénito. Que em equilíbrio é saudável. Para o corpo e para a mente. O rato não sabia. Foi castigado. Excessivo trambolhão.

 

A Carochinha chorou. Lágrimas que registou e enviou para o pai que estava em Lisboa. Sem saber ler nem escrever. Mas soube que ele não a leu. Nunca recebeu a confirmação de leitura. E a Carochinha chora à janela. Quem quer, quem quer, ajudar Carochinha que é apenas viuvinha? Ninguém lhe prestou auxílio. Apenas passou um jovem que olhou para ela e foi-se embora. E ao serão, a minha tia Isaura conta,  a história do João Ratão. Diz que o infernal episódio até foi merecido. Que no caldeirão ferveram a vaidade, a imprudência e a gulodice. Acrescenta que a violência da história é real, todavia normal. Porque o João é um pequeno mamífero roedor da família dos murídeos. A Carochinha um insecto coleóptero. As pessoas é que são pessoas. E uma história infantil é só isso. Mais nada. E eu digo-lhe que não me parece bem que o desastrado do rato tenha tido uma morte tão horrenda. Ela  sorriu e foi deitar-se. Muito tranquila. E ordenou que eu dormisse também.

 

 

fotografia de João Palmela

17
Jul08

brincar

Paola

 

brincadeiras no alcatrão

 

 

As brincadeiras dos meninos e das meninas do meu país acontecem no 2.º andar, Frente, de um imóvel situado por aí. Numa cidade grande ou pequena, tanto faz. Entretêm-se nos infantários desde as sete da manhã. Os mais crescidos só brincam aos intervalos. Em recreios de mosaicos. Poucos em chão empoeirado e lamacento. Uns e outros não têm condições. Os pais vão recolhê-los tarde. O tempo é pouco e gasta-se no banho e no jantar. Ficam-se a dever diálogos, partilhas e afagos. Os mais crescidos consolam-se com a televisão que está no quarto. E modernizam recados pela Internet. Até tarde. Muito tarde. No outro dia chegam à escola com a cabeça a dormir e com os dedos cansados de tanto escrever. Palavras encriptadas. Erros caligráficos. Abreviaturas inventadas. Estrangeirismos desnecessários. Mas escrevem e dialogam. Trocam afectos. Tudo à distância. Tudo filtrado por um monitor TFT. Tudo tecnologia de ponta. No quarto ao lado, os pais dormem um sono estafado e moído de anos de trabalho. Não dão por nada. Sonham que os meninos estão a dormir. Profundamente. E mesmo ali, dentro de casa, eles correm perigos estúpidos. Porque acauteláveis.

 

Os meninos do meu país brincam e conversam no quarto. Ou na rua. Até tarde. Tanto uns como outros não sabem que a vida é astuciosa. Que há pessoas sem escrúpulos. E eles são incautos. Mas hábeis a manobrar tecnologias. E fazem perguntas que os pais não escutam, por isso não respondem. Adormeceram sem tempo para dormir.

 

Os meninos da minha terra brincam na relva do jardim, convencidos que estão a jogar às escondidas numa seara de milho. Esticam-se em argolas e correntes persuadidos que estão a trepar às árvores. Olham para o lago com patos de aviário, como se eles próprios nadassem no ribeiro da aldeia da avó. Apavoram-se se um gafanhoto chega primeiro que eles ao escorrega. Gritam atormentados com a presença de uma libelinha. E garantem que são bichos esquisitos. Horrendos. Ferozes. E os bichinhos abalam espavoridos, sem compreender tamanha histeria. E vão contar aos outros animais que viram uns bichos com costumes requintados a berrar no jardim.

 

Os meninos da minha terra não têm chão para brincar. O alcatrão é negro e malcheiroso, mas eles gostam. A terra não, que suja. É lama e pó. E ervas e bichos. E árvores e flores. E frutos e céu. Choveu pouco, mas o cheiro da terra molhada provoca-lhes enjoos. O cheiro a hortelã, a orégãos e a coentros são fedores. Por isso, escrevem mensagens e usam a Internet para descobrir como é uma couve portuguesa.

 

E ao fundo da rua, onde existia uma horta com uma nespereira generosa, há buracos. Valas abertas à espera de alicerces. Amanhã, as nêsperas são janelas com aros cromados e os cortinados esvoaçam afugentando os pardais.

Lá dentro, indiferente ao vento e às borboletas, um garoto joga com uma bola virtual. Num jogo fantasiado. Com jogadores a fingir. Ao lado, pacotes de batatas fritas amontoam-se vazios.

 

O pai nunca o levou ao futebol. Não tem tempo. Na televisão da sala, a notícia sabe a calamidade nacional. E ele não percebe o motivo do alvoroço. Nem a causa da obesidade infantil.

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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