Podias responder que sim! Eu entendia melhor…Pois podia, não me lembrei. Por vezes os adultos complicam tudo. Concordou comigo, sem deixar de acrescentar que os crescidos não sabem falar com as crianças. Que os miúdos sabem palavras mais pequeninas. Limitei-me a aceitar os argumentos, sem deixar de pensar como haveria de medir o tamanho das palavras. Desisti de imediato. Afinal, as palavras pequenas são mais doces.
De repente, como se o tempo e o lugar tivessem renunciado a ser grandes, perguntou-me se eu estava a ver os crocodilos e o vermelho que se estendia por baixo do escorrega. Respondi que sim, na esperança de ter recorrido a uma palavra de dimensão adequada. Confirmei que um deles tinha riscas pretas e amarelas. Que era muito estranho. Que não havia crocodilos assim. Pois não! Repara naquele! Tão lindo… é vermelho… o outro é verde. Olha aquele como é azul. Tão lindos, não são? Não duvidei, não fosse a descrição ganhar palavras desnecessariamente grandes.
Olhou para mim. Pelo rosto escorria a importância do momento. Apenas os olhos adivinhavam a noite que se aproximava, antecipando o brilho das estrelas. Sobrava um pouco de sol. Pediu-me que tomasse conta das crias. Obedeci. Rogou-me cuidados. Enumerou outros tantos. Sim? Perguntou com a certeza a refulgir nos olhos negros. Salva os ovos! Que os tirasse da margem por causa das pessoas que têm os pés pesados e desatentos.
Cuidadosamente, peguei nos ovos. Caminhei como se transportasse uma bilha de água na cabeça, aproximei-me do ninho. Aqui? Sim! E assegurou-me que eu acabara de fazer uma boa ação. Que tinha salvado os pequenos. Sorri na delícia do gesto e na doçura das palavras, mesmo que pequeninas. E os mesmos olhos ávidos de narrativas perguntaram se voltávamos no dia seguinte. Com certeza. Voltaremos. E voltou a explicar que bastava um sim. Que era uma palavra mais pequena. Como ele! Que descobrira crocodilos coloridos numa abandonada poça de água.
E foi nesse momento que me lembrei que, no meu tempo, as poças tinham rãs. Verdes. Não me lembro de outras cores...
Hoje é junho. E eu lembrei-me de agosto. Cálido e morno. Adormecido. Da cor da terra. Da areia que se bambeava debaixo dos pés. Da água morna e doce que corria no rio. No azul que se segurava na minha pele e que me recuso a despir. Exatamente porque não sou criança. Apenas elas conseguem libertar-se da roupa que vestem. E escolher novos modelos, novas cores. Sem arrependimentos, nem culpas. Porque ser junho é que recordei de todos os meses do ano. Dezembro também estava lá. Carregado de frios e agasalhos. Com sabores adocicados e salpicados com canela que a minha avó trazia nos dedos. Nas mãos guardava a coragem do vento e os sabores de menina. Porque é junho, fui buscar o pinheiro. Bravo. Alto, esguio e verde. Foi aí, num ramo robusto, que pendurei o balancé. Depois, balancei-me para cá e para lá. E, ainda hoje, adivinho o vento a acarinhar o meu corpo. O mesmo estonteamento. O mesmo tremor. Só que mais violento. Porque o pinheiro já não vive ali. Nem eu. Que já não sou a mesma que se balouçava à tardinha.
Naquele tempo, eu corria pela estrada carregada de verdes vontades. O destino pintava-se com cores sábias. Lembro-me, a nitidez das fotografias que guardo na memória não me engana, do percurso. Uma estrada comprida e negra (como todas, creio). Uns valados de terra selvagem. Uma vala pouco profunda que subia numa elevação de terra coberta de colorida e verde vegetação. Foi aí que me apaixonei pelas papoilas. Ainda hoje me perco na explosão do vermelho. Mas não é dessas sublimes flores que pretendo falar. Nem do rapaz da bicicleta que se inutilizou por uns dias numa curvada precipitada.
Da casa até à escola primária [agora diz-se básica], aprendi o sabor das ervas e as cores das flores. As azedas veneravam muito bem o apelido. O seu sabor ácido adquiria ares de néctar divino, à tardinha. As ágeis e esvoaçantes pétalas amarelas chamavam, mesmo de longe, a minha atenção. Como elas dançavam ao ritmo do vento! Depois cansei-me e deixei-as em quieta tranquilidade. Provavelmente coisas de crianças, mas não garanto.
Naquele dia, ela [não me lembro do nome da menina colega de classe] segredou-me numa voz doce e ingénua que tinha desistido das azedas. Só porque eram muito amargas. E que tinha descoberto uma melosa alternativa. E lá me contou tudo o sabia. Nada de importante, confesso. Que era uma flor e que se chamava rapazinhos. A prova ficou agendada para depois da saída da escola. Na estrada que nos levava para casa. No valado do lado esquerdo, após a curva grande. Durante largos dias, o hábito dos rapazinhos foi mantido em silêncio. E gostávamos tanto!
É por isso, que guardo essa fotografia na minha memória. Que tenho a cabeça cheia de flores que cresciam livremente na terra. Que se deixavam comer. [Asseguro que não me lembro de alguma de nós ter ficado com viroses sem diagnóstico e coisas do género].
Hoje, no caminho para escola, dias e anos depois, reencontrei-me com o passado. Também numa curva e com uma colega. Ela olhou para o arbusto, calou a minha alegria e num tom de quem percebe muito do assunto, disparou uma Salvia microphylla Benth. Confesso que doeu. Como se não bastasse, veio com a história que é utilizada como planta ornamental e designada pelo nome comum de "Rapazinhos".
Comum? Comum? Comum? Repeti deveras injuriada.
Rapazinhos é nome próprio, assegurei sem se intimidar.
Para acabar com a científica conversa, calei-me. E caminhei pela estrada comprida e preta da minha infância.
Admiráveis, os sonhos. Sonhar é bom. Enche a cabeça de memórias e de vontades. Desejos que ficam no papel. Que dão volta ao mundo. E o Sol ilumina-os. Desvendam-nos por terras e mares. Entre o possível e o impossível, nasce o entusiasmo. E concluimos que somos capazes de fazer um desenho... E a vida é melhor. É que, às vezes, quando sonhamos muito as coisas acontecem... e somos crianças no baloiço a baloiçar. E temos o colo da mãe para dormitar. E do pai para embalar. Depois, chega a preguiça, pegamos nas asas e voamos. E voltamos sempre ali.
E voltei como sempre. E comi arroz-doce com canela e conversei muito. Agosto está de férias. Mas, mesmo num dia soalheiro e espirituoso sabe sempre bem misturar conversas. Assim, há tempo para todas. E isto e aquilo. E mais o outro e a outra. Hoje e ontem. Agrados e desagrados. E gargalhadas de chorar a rir. Sempre!
Ciclicamente o dia de hoje nasceu sábado. Poderia chamar-se outra coisa qualquer. Nome próprio de artista de telenovela. Apelido de jogador de futebol. Alcunha de estrela daquele filme que provocou lágrimas à mãe e arrepios bem administrados ao pai. Amor? Sim… Quando tivermos a nossa criancinha… Sim? Podemos dar-lhe o nome dele? Não sei, ainda é cedo para pensarmos nisso. Vá lá, amor, deixa… E ali, ele abdicou do nome do seu avô.
Sábado. O sexto dia da semana é sábado. Pelo trabalho, pelo repouso. Gosto particularmente do lazer. Os romanos dedicaram-no a Saturno, o deus da agricultura. E celebravam o descanso após a boa colheita. Também eu louvo o arroz-doce da dona Perpétua. Que tem dias. Como eu. Hoje, particularmente doce e com pouca canela. Já se amealha a especiaria?
O café. Inevitável. Mesmo que só um ou dois. O coração já não autoriza desregramentos. Controla as nossas vontades. E nós cedemos. Atento, ele alerta! Cuidado! Mais não. Um coração ardente. E lá de dentro sente-se uma ferida que não dói. Mas é um fogo que arde sem se ver. Abespinha. Mói. Apoquenta.
Nada que estorvasse as nossa viagens. De palavras. De vocábulos com todos os sabores. Açucarado. Azedado. Arreliado. Apimentado. Picante. Agridoce. Venenoso, também. Temos direito. Porque é sábado.
Ao sábado matam-se saudades acumuladas. Fomos lá. Eu gostei de ter ido. Por tudo, mas porque aprendi. É fantástico aprender sempre. Ainda por cima, quando se trata de uma assunto que há muito nos persegue. As respostas não se dão. A gente não sabe e quer saber. A Internet não esclarece. Os livros não sabem tudo. Os adultos não explicam. E hoje, porque é sábado, obtive, finalmente, a resposta. Da boca de uma criança. Fonte mais que verdadeira. Agora já posso dormir tranquila.
- O que é a mamã? Perguntei.
- A mamã é a mãe!
Entendi. É mãe. Mãe. Não é mamã, mas mãe. Mãe! Com um i no fim e muito prolongado. É mesmo mãiiiiiiiiiiiiiiiiii. Claro que é!
Hoje é sábado. Com arroz-doce ornado por risquinhas de canela e apimentado com cantigas de escárnio e maldizer. Poemas ditos aos intervalos porque a refeição teve um extra de luxo. Gargalhadas poucas. O garoto está no rescaldo de uma boa dose de escarlatina. Dois parques infantis. Com as entradas todas a que ele tinha direito. Baloiço. Adorou. Escorrega. Nem pensar. O Sol nascera arrojado. A manhã antecipava uma qualquer tarde de um Agosto escaldante. Hesitou entre carros. Helicópteros. Cavalos e golfinhos. De madeira e bem coloridos. A todos queria, a todos recusava. Entusiasmava-se com a relva. A alegria estava murcha. O calor começa a escorraçar-nos dali. Ali e além, um pedaço de céu dava uma cambalhota . E as nuvens acinzentavam-se. E naqueles admiráveis olhos azuis surgia a convicção que haveria mais manhãs. Sem nuvens. E haverá!
Mudou o cenário. Uma criança não está para se confinar ao primeiro espaço que lhe apareça. Tantas descobertas para fazer. Tanta vida para viver. Outros baloiços. Que a vida também tem correntes. E oscilações. E caos. Bonanças, também. Tristonha por causa da escarlatina. Que deixa marcas no corpo. Um estreptococos obtuso e desnorteado que parou por ali. Que lhe roubou alento. Contudo, brincou e nós brincámos com ele. Depois adormeceu. E foi para casa. Para dormir e sonhar que amanhã também tem manhã.
E depois mais isto e aquilo. E ela disse que sim. A outra disse que não. E elas que não sabiam. Mas ele ordenou que sim. O melhor é não valorizar. Concordo! Nem penses, não faz qualquer sentido. Nunca mais se endireita o mundo. Pois é, o mundo é grande e redondo. Escorrega-nos das mãos. Está muito calor. Ainda por cima não pára quieto. Isto do mundo estar sempre a rodar é mesmo uma grande maçada. Verdade, mas a Terra gira simplesmente porque ainda não parou de se mover. Vai girando e, em certos lugares, passa a ser noite quando era dia e, noutros lugares passa a ser de dia quando era noite. Sem nunca parar! Tudo ao contrário. Insatisfações descontinuadas. Impetuosas, no entanto. Mais de dia do que de noite. Prosas de quem aproveita o sábado para se desembaraçar de palavras daninhas.
Movimentos giratórios. Em torno do Sol. Lisonja terrestre, certamente. A terra não deveria ser assim. E há quem não desista de forçar a linha imaginária. Não percebem que a verdade não rima com bajulice. Um pilar auxiliaria! Um pilar é um elemento estrutural vertical. Ela é. Uma coluna. Um elemento arquitectónico. Porque esteve. Também o é. Porém pilar é melhor. Só por ser mais resistente. Também.
Os pilares têm vida. Cansam-se. Têm direito a morrer de pé. Sem se ajoelharem aos pés de satélites artificiais. Corpos estrategicamente colocados em órbita ao redor de planetas acidentais.
E vai para casa. Não com escarlatina que é doença de criança. Vai com o corpo contagiado por ingratidões. Do Sol. De mim tem agradecimento.
Não sei, não! Um bom pilar faz sempre jeito. Dá estabilidade. E mais equilíbrio...
Nul n'ira jusqu'au fond du rire d'un enfant. (Vitor Hugo)
É hoje! Domingo de criança. Mas os garotos são flores de pita rodeadas por duros acúleos por todos os lados. Uma data projectada. Comercializada. Hipócrita. Untuosa. Açucarada. Como os figos da piteira.
As crianças têm bocas famélicas. Têm pizas e hambúrgueres. Têm mãos de afazeres calejados. Têm videojogos. Ecrãs LCD. Têm obesidade. Têm corpos doídos. Têm gomas e pastilhas multi-coloridas. Têm diabetes. Têm campos de refugiados. Têm quartos com Internet. Têm memórias de campos de concentração. Têm passeios nos centros comerciais. Têm centros de acolhimento. Têm a família no além. Têm ovelhas para acautelar. Têm parques infantis para rebolar. Têm livros para ler. Têm palavras e letras que desconhecem. Têm escola a tempo inteiro. Têm conhecimentos por haver. Têm pés descalços. Têm ténis de corpos fustigados. Têm pais a trabalhar. Têm família morta em cobiçosas contendas. Têm avós ocupadas. Têm a rua. Têm algemas a labutar. Têm tecnologia. Têm campos minados. Têm pedófilos e algozes. Têm piscina e sol com luz. Têm a escuridão. Têm descriminação. Têm direitos. Têm deveres. Têm futuros engraçados. Têm passados ensanguentados. Têm regozijos. Têm prantos. Têm hospitais. Têm lama e capim. Têm! Mas não têm. Depois há os habituais exageros civilizados.
A preocupação é tanta que se descobrem rostos carrascos onde não existem. Em ponto de rebuçado! Todos os vultos são para abater. Em muitos casos, perdeu-se a noção da realidade. Que ridículo! Ai, os senhores psicólogos que descobrem víboras no corpo, cada vez mais enroscado, de um inofensivo bichinho-de-conta. Coitado! Enrosca-se quando ameaçado... Também ele sucumbe às desgraças e infortúnios do mundo. É vítima, por vezes vexado.
Um dia é escasso. E o calendário tem 365 dias. Às vezes, mais um.. Eu defendo que os dias deveriam ser das pessoas. Das pessoas todas.
Oxalá, ninguém se lembre que das folhas da piteira se extrai fibra própria para o fabrico de cordas, tapetes…
E mesmo aqui. Mesmo no 1 de Junho de 2008, as crianças têm fome. Notícia do Público!
Só porque o arroz-doce é tradicional. Eu gosto de tradições. Mesmo que não as cumpra. Por preguiça. Por memórias. Por avessos e contrários em que elas se transformam. Na dona Perpétua, evidentemente. Ao sábado. Na habitual gulodice partilhada. E com ele. O Biel é um garoto feliz. Vê-se nos olhos! Nas mãos. Nos pés alegres e contentes que não se moem de tanto correr. De rir e de gritar. Rodas. Rodas de moinhos. Luzes. Olás. E Lidas. Muitas Lidas. Tanta azáfama. Tanto trabalho. Também ele comeu arroz-doce. E deu. Assim, com uma colher grande que enfiava na boca da avó. Sempre com consideração. Cada colherada é rematada com um “ É bom?”. E era! Mesmo na inversão de papéis. Mesmo na bodeguice dos grãos polvilhados com canela. Ele é um menino feliz. Vê-se nos olhos.
Mas há os predadores de crianças. Perversos. Calamidades. Vermes que não se enxergam. Escondem-se em subterrâneos pantanosos. Em carapaças cobardes e pútridas. Uns ineptos, uns párias. Prefiro as minhocas. Que não são prejudicais à saúde humana. E todos os dias são informação. E não os vemos! Mascaram-se. Saqueiam. Espoliam. Na blogosfera também. Ouço falar de ninhos de cobras. De charcos podres. E as crianças são nenúfares.
Um pouco de paciência, e de tempo, basta para entrar num mundo de sítios de pais babados. Orgulhosos das suas crias. Demasiados Blogs com fotografias infantis. Enlevo fotografado. Amor desnorteado pelo mundo. E eu não entendo o gesto. Para quê tanta fotografia de criança linda? Cada vez mais somos alertados para os perigos. E as nossas crianças correm na Internet. A sociedade é ruim!
Eu sei que a vida é madrasta. Que vivemos abraçados a perigos. Basta sair de casa. Ou não sair. Que a cobertura pode desmoronar-se na mesma. Eu sei.
Mas as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor?!... Porque padecem assim?!...
Augusto Gil
Pelo sim ou pelo não, acabei de comprar mais um álbum. Pequeno, feito de cartão canelado. A cor? Vermelho-criança, certamente. Com triângulos transparentes nos cantos. Cada página separada por folhas de papel vegetal. Não há-de ser qualquer sedução digital online que me obriga a renunciar ao tradicional álbum para fotografias. Assim como não deixarei de comer o tradicional arroz-doce.
Não por uma questão de verborreia saudosista. Antes por causa das crianças. Y los niños, caballeros? Los niños?
(imagem de www._doces_momentos_.blogger.com.br/menino.jpg)
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]