Partiu no aprumo da decisão. Sempre a andar. Pensou em olhar para trás, mas continuou num ritmo tolhido pela música que ouviram na final da tarde. Quase noite. Quase nada. Depois de uma ilimitada dança a dois. Vestiram-se para expor disposições. Despiram-se. Na pele, ficaram tatuadas lentas coreografias. E todos os tipos de dança. Tombou uma lágrima. Calaram-se os aplausos.
Admiráveis os pés que a gente tem! E que importa se não tenho culpa de os ter assim? Quem não aprove não gaste e deixe estar. Andar a dois pés é humano, por isso ando. Tanto que às vezes sinto que os gasto até aos joelhos. Depois poupo-os. Mas gosto.
Suportam pesos. Belezas e vontades. Aborrecem-se e calçam botas para esconder tempestades. E partem para manobras acrobáticas, persuadidos que andam nas nuvens. E caem dos saltos pontiagudos que a vida tem. Depois riem, enfiam uns chinelos nos dedos e palmilham o mundo inteiro. Sem parar porque a praia é o destino. No deserto a areia enrola-se nos dedos. Os passos não fluem e os pés enterram-se à espera que a tempestade cesse. Tapa o céu, de horizonte a horizonte, e os dromedários só têm uma bossa. Os camelos é que têm duas. Os pés desnorteiam-se, não reconhecem o caminho. E vão, sem rumo e andar é um movimento ilegal se um pé paira no ar. Por isso, movem-se os dois. São uns andarilhos, os pés. Contorcem-se padecidos. Impõem calçado cuidado quando sabem que a deslocalização é o fim. Então clamam a urgência de consolidar a tradição.
Os pés deambulam à beira-mar. Encontram livros na biblioteca. Ensaiam passinhos de dança e trauteiam canções de embalar. Desvendam flores campesinas e cobiçam o rio que corre sem parar. E à noite, levam-me para a cama. Gosto que os meus pés me carreguem com eles. Que me convidem a passear e a olhar. A colorir os sonhos com memórias e o arco-íris com vitórias e derrotas. Com afectos, também. Com pessoas. Gosto que os meus pés me transportem pelo mundo e dividam comigo viagens a haver. Gosto que os meus pés me sussurrem ao ouvido que hoje não vamos ali. Eu cedo. E ficamos aqui.
Os meus pés são incautos e crédulos. Tão simplórios! Andam atrás das pessoas. E vão com elas. Não admira que os pisem. Tivessem cuidado, berro abespinhada. Desiludida e pisada. E é nestes momentos que invejo a força da pata de um elefante. Pelo peso, tamanho e força descomunais. A boca de um hipopótamo também serve.
Enfiados nos chinelos, os meus amados viajantes olham para mim e riem. E partem em bicos de pés. Et voilà! Chaque danseuse a ses astuces personnelles...
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto.
[Fernando Pessoa]