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ponto de admiração

ponto de admiração

13
Mai09

despintar

Paola

[Passeios ao domingo]

 

 

 

Aos domingos, dava passeios pela avenida principal. Alindava-se para os ver passar, invejando-lhes a agilidade. Até a ganância do primeiro beijo. Beijo doce. Salgado. Perfumado com odores de laranja. A turbulência das mãos na brandura do olhar. Mãos de seda que buscavam o Sol, nas vísceras do tempo. Na impermanência do querer.

 

Do lado de cima, tudo lhe parecia muito do mesmo. Na monotonia dos gestos. Na incontinência dos compromissos. Nos zunidos distantes da música. Do lado das raízes, nada se rebanhava na semelhança repetida aos domingos à tarde, na calçada. Tão diferente do lado de lá!

 

Já conhecia os seus passeios. Em tempos, contara-lhes as pedras, distinguindo as brancas das pretas. Mas havia as cinzentas. Turvas. Turbulentas e indecentemente indecisas. Embriagadas. Dessas, nunca entendera a cor.

 

fotografia de Jorge Soares

 

 

17
Mar09

atempar

Paola

O vento rodopia rápidas reprimendas. Por aqui e por ali. Mais além, acolá também. Divulga-se, voa, galga mares e escala montanhas na mais completa ânsia de transposição de espaços. Dispersa-se nas línguas e nas gentes. Sabe segredos que partilha a cada esquina. O ancião carrega uma mão cheia de sentidos. E pelos dedos, conta um a um… concluindo, invariavelmente, que lhe falta outro. Que a conta está errada!

 

O tempo inveja-lhe o ofício. Quer ser vento, de manhã, à tarde, até de noite. Por isso, põe-se a acontecer, implacavelmente. O vento graceja da incapacidade. Lembra-lhe a ausência de mãos e acrescenta que não tem sentido o que teima em fazer. Que guarde as asas! Quebradas não chegam ao céu… alerta.

 

Percebi a dignidade do vento. Se não desperta todos os dias com a mesma intensidade, a erro é do tempo. Ao relógio, extingo a corda… vou deixá-lo a abolorecer. Sempre que o meu relógio não tem tempo, a minha liberdade solta-se com o vento. 

 

[imagem da internet]

 

31
Dez08

querer

Paola

Ano Novo, Vida Nova?

 

 

Não sei se quero. Se calhar até quero e não sei… Provavelmente não. Ou posso e não sou capaz? Sinto-me embrulhada em protótipos culturais com lacinhos tão banais. Que seja mais um, que depois venha outro… que seja! Eu sou a soma de todos os anos que carrego, na recusa de ser uma simples adição.

 

Ano Novo, Vida Nova?

 

Não sei se será… Talvez com mais silêncio…  A minha vida não será nova porque não deitarei fora o tempo que já agarrei. E o tempo fluirá pelas palavras que direi. Espontaneamente. Adornar-se-á nas figuras de estilo que inventarei... nas sílabas que suspirarei... na busca incessante de eufemismos que urdirei para calar desconcertos hiperbólicos. Teimoso, o tempo,  repetir-se-á em soantes paralelismos anafóricos. Todas as manhãs, apesar de mim.

 

Que seja um bom ano para todos. Que seja!

 

29
Out08

borboletear

Paola

 de Jorge Soares

 

A borboleta borboleteia-se em movimentos singulares. Subtilezas de bailarina. Quando sobe nas pontas das suas asas encontra uma leveza sublime e uma delicadeza ímpar. Invejo-lhe a doçura das cores compostas nas escamas profusamente emolduradas em complexas colorações. A graciosidade do andar. E quando descansa, a borboleta dobra as suas asas para cima. E faz preces de polinização. Vagabunda do Sol. Aventureira da vida, esvoaça no limite da beleza. No casulo, acontecera magia enfeitiçada e, num momento de singular benignidade, explodiu uma insólita excelência. De flor em flor, graciosamente. Sem compreender que o belo é efémero. Que a flor vai definhar e sucumbir. E ela é uma presença fugaz. Ao sabor do Sol que no Inverno não tem calor. Apenas ilumina dias minguados e grisalhos. O amarelo está desbotado. E a borboleta não sabe que, no Sul e no Norte, o Inverno não acontece ao mesmo tempo. O Sol também se borboleteia. Acorda todas as manhãs. Ciclicamente. A borboleta borboleteia como se fosse o último dia. Pisa o palco uma só vez, sem direito a bisar. A borboleta desconhece a força da sua fragilidade. Quer voar, voar perdidamente aqui e ali e mais além. Como uma alma que se liberta à procura do infinito, porque se sabe mestra na transformação.

 
E eu, que olho a borboleta com olhos estúpidos de deslumbramento, não concebo a destreza. Nem a leviandade de quem vive a saltitar. Invejo-lhe o casulo que foi seu e que desbaratou. Na metamorfósica ânsia de querer volutear. E já com as asas feridas pelo vento, irrompe na mais admirável voluptuosidade, modificando-se com a vida. Sempre a borboletear. Sente o equívoco do ar nas asas e corre para investigar a função das mudanças. Para compreender processo da metamorfose organizacional. Que a sua foi natural.
 
A solidez do meu casulo ostenta brechas e fendas. Hiatos tamanhos. A claridade trespassa e estonteia-me. O vidro do casulo estilhaçou-se bruscamente… Há destroços. Asas que sucumbem. Já não vejo sonhos a desenhar passos de dança delicados. Apenas sorrisos esboçados. Movimentos tracejados. Vacilantes e perplexos.
 
E eu só quero esticar as minhas asas contundidas e desaparecer no ar… Precipitada ambição. A avestruz é uma ave que nem sabe voar!
 
16
Set08

nascer

Paola

de Paola (Ericeira)

Nasceu ele e tu mais eu. E mais os outros. E nascemos todos os dias. Para renascer no dia seguinte. E depois no outro que não há tempo para perder. E se o houver é intrujice. Porque alguém ousou atrasar o relógio que geme na parede rebocada da sala. Sangrando ao sabor de negras horas. Celebrando porque há instantes ditosos. Desumano, todo aquele que se afoita a apressar os ponteiros. As horas correm aceleradas. Para a frente e para trás. Excessivas. E a saudade surge limpando os rostos, sempre que o passado e o futuro se amotinam no presente.

 

- E quem se atreveu a controlar um tempo que sou eu?

- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!

- Fala! Só quero um nome. Depressa não há tempo para desbaratar!

- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!

- Como ousas desafiar-me? Diz-me quem te moveu!

- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!

- Teimoso! Não vês que os ponteiros nem precisos são?

- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!

- Burro! Confundes tudo. O relógio não é o tempo. Tu não nasceste assim. Evoluis, mas não mudas. Eu sou. Eles crêem que me controlam através de ti. Que nascer é o mesmo que viver.

- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!

- Eu sou o tempo, não percebeste? Eu vivo em cima das árvores que me escondem e protegem. Há gente ruim que persegue o meu final. Tu és um adorno, eu sou o princípio e o fim.

- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!

- Desgraçado! Cego e manipulado! Eu perduro para além de ti. Tu vendes-te por aí. Eu vivo ao sabor do Sol e das marés. Tu és um tic-tac constante que eu silencio. Tu emperras na ausência de mim. Marcas lembranças e utopias. Invenções. Desejos que se agasalham no vão das horas. Compromissos impostos com hora de entrada e de saída. Com hora de almoço medida e contada.

- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!

- Imbecil enfeite! Tu mostras o que eu quero que digas. Tu és a minha boca. O meu corpo. Eu sou eu. Tu és acessório figurante. Eu sou essencial. Nasci primeiro. Eu sou assim!

- Não sei! Não digo! E o tempo não é teu!

 

E o tempo, farto de tanta teimosia repetida, abalou. E pensou em D. Quixote. E naquela mulher que, um dia destes, encontrou no autocarro. Que se queixava de não ter tempo para nada. Que jurava que o relógio andava sempre adiantado. Que as 24 horas estavam falsificadas. Que trabalhava que se fartava. E era duro o trabalho que fazia. Mas, rematava ela que “quem nasce lagartixa não chega a jacaré". Pois não. Às vezes chega. Se tiver tempo. E é exactamente por essa razão que um relógio nunca chegará a tempo.

 

Já na rua, sorri. E gargalhei. Ao mesmo tempo que as minhas mãos retorciam a corda do relógio. Com entusiasmo. Com impiedade. E fui-me embora convencida que havia roubado o tempo…

 

 

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Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. [Fernando Pessoa]

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